Abre um site de compra de experiências. Ali mesmo, na página inicial, vê uma promoção apelativa: por apenas 40 euros – o preço inicial era 80 – pode ficar a saber que alergias e intolerâncias alimentares tem. Interessa-lhe, clica para saber mais e o que lê deixa-o ainda mais cativado: apenas numa sessão é possível testar cerca de 190 alimentos. E o melhor? É indolor. Continua a ler e apercebe-se de que a experiência está anunciada na secção de estética. Pensa duas vezes. Procura o local onde o teste decorre. Um teste de saúde feito num centro de estética? É de desconfiar. Desiste da ideia.
Essa é a decisão certa, de acordo com a imunoalergologista Célia Costa, coordenadora do grupo de interesse de alergia alimentar da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC). “Esses testes não são credíveis e tanto a Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica como a SPAIC já publicaram posições a dizê-lo. Habitualmente chamados “testes de intolerância/alergia alimentar” – há empresas que os vendem assim, como se intolerância e alergia fosse o mesmo –, entre eles o mais conhecido é o do doseamento da IgG (imunoglobulina G), mas também há os de biorressonância, estudo do DNA com amostras de cabelo, etc. Todos testes sem qualquer fundamentação científica nem utilidade diagnóstica”, diz ao i a especialista, que defende que “a sua realização tem de ser condenada. São elementos de má prática clínica por quem os utiliza. E a maior parte são de clínicas de estética”.
Apesar de serem, na verdade, um engodo, uma breve pesquisa online mostra que estes testes se multiplicam. Outra empresa de experiências, por sua vez, vende um “teste de intolerância alimentar” que analisa 545 alimentos por apenas 25 euros – sem promoção, era a 80 euros. E, tal como o teste anterior, também este está na secção de estética.
“Do ponto de vista comercial, como não têm fundamentação científica, estes testes não têm comparticipação por nenhum subsistema de saúde e, portanto, são rentáveis”, contextualiza Célia Costa, que alerta que “as pessoas, por autoiniciativa ou aconselhadas por alguém, fazem–nos, e isso pode ter consequências graves”. É que, feito o teste, como explica a imunoalergologista, o passo seguinte é uma série de restrições dietéticas significativas. “No teste de doseamento da IgG há um sistema de cores: vermelho é o que não pode comer mesmo, amarelo pode comer mas em pequena quantidade, e o verde é o que pode comer. O que vem a vermelho são alimentos que nós introduzimos desde cedo na nossa dieta, como leite, ovos ou trigo e que são ubiquitários [estão presentes em vários alimentos]. Se a pessoa tirar da sua alimentação estes alimentos sem necessidade e sem qualquer controlo, pode eventualmente sofrer consequências nutricionais e metabólicas, o que se traduz num impacto significativo na qualidade de vida”, assinala Célia Costa.
A IgG, elucida, é um anticorpo que o nosso organismo liberta quando está exposto a algum alimento e é uma resposta normal e fisiológica, o que explica o porquê de o teste do doseamento de IgG não ser fiável: “O que acontece é que alimentos como o leite ou os ovos vão ter sempre a IgG positiva e, às vezes, muito alta, porque é uma resposta normal do nosso sistema imunitário, não significa que somos alérgicos, nada disso. Estamos desde cedo expostos a esses alimentos e ainda bem que desenvolvemos esse anticorpo”. Já quando o organismo está perante um alimento ao qual é realmente alérgico é libertado outro anticorpo, designado IgE (imunoglobulina E). É esse anticorpo que é testado pelos imunoalergologistas, num teste – fiável – chamado doseamento da IgE específica.
Como resultado da febre dos testes de alergias e intolerâncias alimentares, cada vez mais pessoas procuram ajuda médica por não se sentirem bem depois de terem sido levadas a deixar de consumir determinados alimentos. “Infelizmente é cada vez mais frequente. Ao serem divulgados de uma forma tão eficaz e com promoção, as pessoas acabam por ir atrás. E, depois, acabam por vir ao imunoalergologista, que tem de desmistificar toda essa situação, e têm de fazer os testes que têm realmente validade”, admite a especialista.
Alergia e intolerância alimentares: qual a diferença? Quando o tema é alimentação, é fundamental esclarecer que alergia e intolerância não são conceitos com o mesmo significado e referem-se a dois problemas de saúde muito diferentes. “Na alergia há uma resposta exagerada do nosso organismo a determinadas substâncias designadas alergénios que o corpo interpreta como perigosas e, como tal, desenvolve anticorpos especiais para se defender. Assim, desencadeia um processo inflamatório que pode manifestar-se de várias formas e em qualquer parte do corpo. Já nas intolerâncias alimentares, o sistema imunitário não é ativado e o que as provoca são fatores variados – farmacológicos, enzimáticos, tóxicos ou outros que desconhecemos”, explica a imunoalergologista.
O exemplo clássico da intolerância alimentar é a intolerância à lactose e permite perceber melhor o que está em causa. “A intolerância à lactose, que é o açúcar do leite, tem que ver com um défice total ou parcial de uma enzima que é a lactase, que existe ao nível do intestino, e que faz a degradação da lactose, de modo que esse açúcar possa ser absorvido pelo organismo. Mas a lactose, como é um açúcar muito grande, não pode ser absorvida em forma de lactose. Então, a lactase no nosso intestino divide a lactose em dois açúcares mais pequenos – a sacarose e a glucose –, e assim nós já conseguimos absorver esses açúcares. A intolerância à lactose é muitas vezes confundida com a alergia ao leite, que não tem nada que ver – aí sim, há ativação do sistema imunitário”, descreve Célia Costa.
Comparada com a alergia alimentar, a intolerância tem menor gravidade e caracteriza-se acima de tudo por uma sensação de desconforto. Os sintomas são habitualmente gastrointestinais: distensão abdominal, gases, cólicas, diarreia ou diarreia alternada com obstipação são alguns dos sinais de que se sofre de intolerância alimentar. Ao contrário da alergia alimentar, com uma intolerância não existe o risco de se sofrer uma reação grave nem uma anafilaxia – a mais perigosa reação alérgica, que pode mesmo levar à morte. Por isso, reduzir ou parar o consumo do alimento são os passos certos para reduzir o desconforto. No caso das alergias, por seu turno, deixar de consumir o alimento é incontornável. “Na alergia, às vezes basta uma pequena contaminação ou um vestígio para se desencadear logo uma reação”, alerta a imunoalergologista. E o perigo pode não ser visível, explica. Uma pessoa alérgica a marisco, ao passar num sítio onde estão a cozer ou preparar o alimento, inala o alergénio. Há ainda casos de reação cutânea mais inesperados. “Uma pessoa acabou de comer peixe e a seguir vai dar um beijinho a uma pessoa alérgica. Pode fazer uma urticária de contacto, manchas no local do beijinho”, diz Célia Costa.
Os autoproclamados alérgicos e intolerantes: uma tendência? “Sou alérgico ao leite”, “sou intolerante aos ovos”, “sou alérgico ao queijo”. Dificilmente não conhece alguém que já tenha dito frases do género, muitas vezes sem qualquer fundamento. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, uma equipa da Faculdade de Medicina da Universidade Northwestern (estado do Illinois) debruçou-se mesmo sobre a “tendência” e, num estudo publicado em janeiro deste ano, concluiu que uma em cada dez pessoas tem uma alergia alimentar, enquanto quase o dobro acham erradamente que são alérgicas a algum alimento. Por cá, Célia Costa também reconhece a tendência. “Sem haver um diagnóstico, as pessoas autorrotulam-se como alérgicas ou intolerantes e muitas vezes não o são. Portanto, o diagnóstico tem de ser sempre confirmado com um médico experiente, um imunoalergologista, e deve basear-se em testes de diagnóstico específicos da alergia”, avisa.
Ao mesmo tempo, apesar dos falsos alérgicos e intolerantes, a verdade é que não só as alergias alimentares mas as alergias no geral estão a aumentar, reconhece a médica. “Efetivamente, a alergia tem aumentado nos últimos anos e a prevalência das doenças alérgicas tem crescido significativamente, não só a alergia alimentar mas todas as outras doenças alérgicas: a asma, a rinite, o eczema”, afirma, explicando que a origem desse aumento é “multifatorial”.
No caso da alergia alimentar, continua Célia Costa, tal justifica-se pela “modificação dos hábitos alimentares, com a introdução de novos alimentos que há alguns anos não ingeríamos tanto, e a utilização de cada vez mais produtos processados industrialmente, que acabam por criar novos alergénios, e então aparecem novas alergias e ocorrem reações”. Mas não só: algo curioso é que o aumento das alergias alimentares também pode ser uma consequência do aumento das alergias respiratórias, “em específico da rinite e da asma, que têm estado a crescer devido às mudanças do estilo de vida, às modificações ambientais, à diminuição do número de infeções na infância e à melhoria das próprias condições sanitárias, mas também devido à própria genética – há uma tendência para a existência de doenças alérgicas na mesma família em várias gerações”, conclui Célia Costa.