Celeste dos Cravos. A revolução mudou-lhe também o nome, faz 45 anos. Foi um acaso, uma “inspiração divina”, rematou um dia o Cardeal Patriarca ao ouvir a história contada pela própria. Celeste Martins Caeiro não encontra melhor explicação para o episódio que a tornaria uma das protagonistas inesperadas do 25 de Abril, mas agradece ter estado lá.
Foi ela que ofereceu os primeiros cravos vermelhos aos militares que encontrou a caminho do Largo do Carmo, a flor que se tornou símbolo de liberdade.
Batemos-lhe à porta num prédio estreito e de escadas íngremes na freguesia de Santo António e marcamos encontro à porta da sede do PCP na Avenida da Liberdade, partido em que se filiou já depois da reforma, que a vida de trabalho nunca lhe fez sobrar tempo, justifica. São quase 86 anos – Celeste celebra o aniversário a 2 de maio, com pena de não ter nascido no dia do trabalhador.
A memória já não está como dantes, avisa, mas um dia assim não se esquece. Celeste trabalhava num restaurante no edifício “franjinhas” da rua Braamcamp, “o primeiro self service do país”, que funcionava como uma espécie de cantina de muitos escritórios nas imediações, da rua do Salitre à Castilho. A casa tinha aberto a 25 de abril de 1973 e preparava-se para festejar o primeiro aniversário. “Os patrões queriam fazer uma festa e disseram ao gerente para comprar flores para pôr nas mesas. O senhor Ramos foi à praça da Ribeira. Comprou cravos, podia ter comprado outras flores quaisquer.”
A história começou assim a compor-se. Porquê cravos? “Nunca lhe cheguei a perguntar, talvez por serem mais baratos”, diz Celeste. Naquele dia, como era habitual, chegou ao restaurante às 9 da manhã, sem fazer ideia do que se passava na rua. “Não tinha telefonia em casa, não tinha nada. Vivia muito bem…”, sorri. Apanhou os colegas e o patrão à porta.
“Lembro-me das palavras do dono, o engenheiro Matos Chaves. ‘Meus senhores, a casa não vai abrir porque se está a dar uma revolução’. Ou um golpe de estado, isso já não recordo bem. ‘Os senhores vão para casa e depois nós avisamos se der para o bem ou para o mal’.
Desde o primeiro momento soube que ia “dar para o bem”, uma vontade de mudança que, de alguma forma, carregava desde pequena. Lisboeta de gema, nascida na freguesia do Socorro, tinha família na Amareleja. “Dizia-se que era a aldeia mais vermelha do país”, recorda. Numas férias apercebeu-se de reuniões clandestinas em casa dos tios, ficou noites inteiras a matutar. “Não podes contar nada, Celeste”, pediram-lhe. E embora nunca estivesse diretamente envolvida na resistência ao regime, foi fazendo o que pôde. Antes do restaurante, trabalhara numa tabacaria na rua da Prata, local de paragem de pessoas de esquerda, contrabandistas. Pediam-lhes os livros de José Vilhena, proibidos, e arranjava forma de os esconder debaixo dos volumes de tabaco para não serem levados pela polícia. “Fintava-os.” E quando o patrão lhe dizia: “Ai Celeste, qualquer dia vai dar barulho”, respondia com a mesma confiança. “Deus é grande, não vai nada.” Nas tardes de folga ia ver julgamentos à Boa Hora, indignava-se. “A gente punha-se na fila e eles empurravam-nos”.
Na manhã de 25 de Abril, antes da ordem para ir para casa, os colegas que lhe conheciam a raça, aconselharam-na. “Celeste, ouviste o que o patrão disse: vai para casa para o pé da tua filha e da tua mãe e não te metas em barulhos”.
Não ligou muito. Foram ao armazém buscar os cravos para que não murchassem e apanhou o metropolitano para ir para casa num quinto andar em frente aos armazéns do Chiado, casa que perdeu no fogo de 1988. “Quando saí do metropolitano no Rossio não se via ninguém na rua. Até que vi os militares”.
Estava na esquina antes de começar a subir para a rua do Carmo. Pensou que era mesmo uma revolução. “Perguntei ao soldado para onde iam. Alguns estavam ali desde as 3 da manhã. ‘Por acaso a senhora não tem um cigarrinho, perguntou-me um’. Nunca fumei, não tinha, se calhar é por isso que ainda cá ando”, sorri, antes de se emocionar. O 25 de Abril dá-lhe sempre para chorar. “Não tinha e tive pena, olhei para todos os lados a ver se havia alguma coisa aberta para lhes arranjar alguma coisa para comer mas não havia nada. Tirei um cravo e dei-lhe. Aceitou, podia não ter aceitado. Pôs no cano da espingarda e achei bonito. Depois tirei outro e dei a outro soldado, que também pôs no cano. As pessoas julgam que fui eu que pus os cravos nas espingardas, mas não, estava muito alto”. A idade tornou-a mais pequenina, mas nem que fosse muito alta seria o suficiente para os alcançar na chaimite.
Seriam pouco mais de meia dúzia de flores. Celeste chegou a casa e, da janela, mostrou a revolução à mãe, disse-lhe que tinha sido ela a dar as flores.“Disse-me: ‘Esta rapariga é maluca, então puseste-te à frente da tropa, podias ter levado um tiro.’ Respondi-lhe que não, que aquilo ia dar para o bem”.
Depois do almoço saiu para a rua, para o largo do Carmo, esteve a noite fora. No dia seguinte, quando a foram chamar para trabalhar, perguntava-se na rádio de onde teriam saído os cravos. A história correu e deu a primeira entrevista à Crónica Feminina. Seguiram-se outras. “Todos os anos era dispensada, mas sou uma pessoa como as outras, não sou mais importante. Aconteceu”.
Quarenta e cinco anos depois, não imaginava ainda cá andar, mas gostava de chegar pelo menos ao meio século de democracia, não falta assim tanto. Enquanto for viva, é na rua que festeja Abril. “Quando já não estiver cá, fica o símbolo”, diz.
O significado da liberdade é difícil de pôr em palavras, são imagens que se sobrepõem. “Lembro-me das pessoas na rua, muito contentes, parecia que estavam noutro mundo, que não eram deste. Tinha uma amiga com uma filha pequenina. Um dia estavam no Camões ao pé de uma sapataria e a miúda disse: ‘Ó mãe, os sapatos são caros?’ A PIDE estava atrás: o que está a dizer a menina? Quer que leve as duas? Não se podia dizer que uns sapatos eram caros. Mas eu fintava-os. E tudo ia dar para o bem”.