Chamaram-lhe um dia a Montanha das Maçãs, nome com o seu quê de poético. Talvez digno de Abay Qunanbayuli, ou simplesmente Abay, o Pushkin dos poetas cazaques, aquele que perguntava: “… Porque és tu tão inacessível? Porque é que cada vez que queres dar, dás cinco? E porque é que de cada vez que resolves tirar, tiras seis?”
Há algo mais inacessível do que a escuridão? A escuridão eterna da cegueira?
Os homens que se juntam no pavilhão do Kairat – esse clube que nasceu no tempo da União Soviética com o nome de Lokomotiv Alma-Ata –, ao fim da tarde, para iniciarem o treino de futebol de salão, não conseguem vislumbrar, ao longe, a Montanha Azul, Kök Töbe, nem os pomares de macieiras bravas que servem de fronteira ao crescimento de uma urbe que já ultrapassou os dois milhões de habitantes se incluirmos os subúrbios de Talgar, Boraldai ou Otegan Batyr. São cegos. Alguns mais, outros menos, que a cegueira pode ser graduada.
O projeto já tem anos. E cresce a olhos vistos, se a expressão faz sentido. Ainda há poucos meses, Luís Figo, o antigo capitão da seleção nacional, veio aqui na companhia do presidente da UEFA, Aleksander Ceferin, para perceber o duro trabalho que é levado a cabo por gente como Chingis Temerkhanov, o mentor deste programa que o FC Kairat abraçou e procura transformar num exemplo a nível mundial. “Não posso dizer que haja necessidade de um grande investimento. Estamos confiantes que encontraremos patrocinadores capazes de fazerem frente, sobretudo, à aventura de criarmos um campeonato nacional escolar que permita o acesso mais popular ao futebol por parte de jovens com problemas de visão. Para isso, viajo um pouco por todo o país, na tentativa de chamar a atenção para aquilo que estamos a fazer no FC Kairat”.
A Federação Internacional dos Desportos para Cegos (IBSA na sigla inglesa) tem igualmente apostado nos contactos internacionais o mais frequentes possíveis e pretende que na próxima edição dos Jogos Paraolímpicos, marcada para o ano que vem, em Tóquio, estejam presentes seleções que garantam a popularidade da modalidade.
Seis meses O FC Kairat implantou o futebol para invisuais há cerca de seis meses. Claro que, nesta altura, o espetro competitivo está reduzido ao mínimo. “Basicamente limitamo-nos aos treinos”, declarou o capitão da equipa, Kanat Akymbaev, à revista Blind Football, precisamente editada pela IBSA. “Estou encantado, fascinado com o que está a acontecer. Estamos a trabalhar com afinco nos últimos meses e tudo isto tem servido para restaurar a nossa autoconfiança e autoestima, além de que contribui para a nossa saúde física e mental. Quando entro em campo esqueço-me completamente que sou cego. Torno-me um homem normal com uma vontade enorme de ganhar e de me tornar internacional pelo meu país. Quero representar o Cazaquistão em provas no estrangeiro e ter orgulho em mim e nos meus companheiros”.
Na brincadeira, os cazaques costumam dizer que não há uma única história sobre o país que não meta um cavalo, tal é a paixão que sentem por estes animais. Voltemos aos versos de Abay: “Quando o garanhão conquista a égua/ estamos perante a manifestação do amor divino”.
E Akymbaev: “É absolutamente uma manifestação divina, esta nova forma de fazermos frente às nossas deficiências. Somos cegos e compreendemo- -nos uns aos outros perfeitamente por termos noção da dimensão da fraqueza que nos domina. Não podemos ver o público que vem aqui apoiar-nos nos treinos, mas ouvimos as suas palavras de incentivo e isso enche-nos a alma”.
Quando é que o Cazaquistão conseguirá ter o seu campeonato, a única forma de subir os degraus inclinados de uma superação coletiva, parece ser pergunta ainda sem resposta. Que o Kairat assumiu o comando desta caravana que percorre as estepes do país como antigamente o faziam as caravanas lendárias da Rota da Seda.
Almaty é uma cidade fascinante cujas origens se perdem na névoa da Idade do Bronze. O seu primeiro nome foi Almatu, da palavra alma, maçã em cazaque. Hoje não esconde a fortíssima influência soviética da sua arquitetura. Pelas avenidas largas, as pessoas atarefam-se nesta obrigação presente e urgente de preparar um futuro. Muitos não conseguem parar uns segundos que seja para olhar um pouco em redor. Não sabem o privilégio que têm de, simplesmente, ver.