O mundo ocidental está definitivamente com os seus valores trocados. Ver Notre-Dame a arder foi um momento horrível que não pode deixar ninguém indiferente. Não tendo um fascínio especial pela capital francesa, o certo é que aquele símbolo era de facto um dos mais especiais, não só pelo que foi, como pelo imaginário que à sua volta se criou.
As imagens incomodavam tanto que era impossível não sentir impaciência com a demora dos meios a chegar ao terreno e a começarem a fazer o trabalho visível através das câmaras de televisão.
E o momento em que o pináculo desabou foi uma imagem de como a nossa história pode ser consumida em poucos minutos – uma imagem que devemos recordar para sempre até para evitar que outros desastres aconteçam por cá.
Mas as imagens de Moçambique, aquelas mães que passaram noites a segurar os filhos fora de água, aqueles homens e mulheres que ficaram de um momento para outro a viver na rua, aqueles homens e mulheres que do nada morreram e deixaram dezenas de órfãos, aquelas crianças… Essas imagens, sim, são uma história mais minha. Aqueles vidas sim estão ligadas a nós e nós a elas.
A mim enquanto português choca-me a maior generosidade com Notre-Dame do que com Moçambique por dois motivos: o primeiro só vincula aqueles que são portugueses, os laços, o segundo deveria vincular todos, a vida.
A destruição dos registos do passado, do que resta do que fomos, é uma perda civilizacional, mas nada comparado à perda de centenas de pessoas, à destruição do futuro.
Surpreende por tudo isto que poucas horas após o incêndio de Notre-Dame seja anunciado que os donativos iniciais dados a Notre-Dame foram 16 vezes maiores do que os existiram para a Beira, onde além das 600 mortes um milhão e meio de pessoas foram afetadas.
O ciclone Idai, que assolou Moçambique, Malaui, Zimbabué e Madagáscar, deixou um rasto de destruição cujos prejuízos estão avaliados em cerca de dois mil milhões de euros e nos primeiros seis dias foram angariados 57 milhões de euros para os países afetados. A soma que nas primeiras horas foi conseguida para Notre-Dame não tem sequer comparação: 900 milhões de euros.
Nada temos a ver com a forma como os milionários franceses – responsáveis por parte significativa destas doações – gerem as usas fortunas e se preferem doar à causa x ou y. Mas devemos ser exigentes quanto ao que será aplicado por nós cidadãos, enquanto União Europeia e enquanto país, sim, porque Portugal já anunciou que quer fazer parte da reconstrução – ainda que a posição não tenha sido clara.
Acho muito bem que façamos parte da reconstrução, desde que não seja um apoio desproporcional face ao que estamos dispostos a fazer quando se trata de uma história que nos é mais próxima e, sobretudo, que ‘mete’ vidas humanas.
A esse propósito vale a pena refletir ainda sobre o que Portugal e as autoridades portuguesas fizeram quando em 2015 houve o incêndio do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, ou quando no fim do ano passado ardeu o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Se Notre-Dame faz parte da nossa história como tanto tenho ouvido, estes dois museus são a nossa história.
E, por isso, Portugal tinha obrigação de ser extremamente ativo na reconstrução dos mesmos, de mostrar uma disponibilidade ímpar.