Um pequeno país com espaço para várias tradições

Um pequeno país com espaço para várias tradições


De Norte a Sul do país, a Páscoa assinala-se de diversas formas. Especialistas atribuem as diferenças à origem dos povos de cada região, mas também à influência das várias ordens religiosas.


Portugal tem pouco mais de 92 mil quilómetros quadrados de área e o cristianismo é a religião preponderante, mas mesmo assim cabem entre fronteiras diferentes tradições pascais que cada região adotou para assinalar a data. Mas como se justifica o fenómeno? “O país, embora pequeno, é constituído por regiões diferentes, com origens populacionais diferentes e marcadas de modo diverso do ponto de vista religioso”, começa por enunciar ao i Anselmo Borges, teólogo e professor de filosofia da Universidade de Coimbra. “Por exemplo, no sul, o Alentejo foi muito marcado do ponto de vista religioso pelas ordens militares, que eram de grandes senhores – e por isso ainda hoje temos o grande latifúndio. No Alentejo, as pessoas são muito religiosas, pura e simplesmente dão pouca expressão pública à sua religiosidade porque as ordens militares as marcaram negativamente”, recorda. Já no norte do país, é muito diferente. “Lá em cima, por outro lado, há uma grande proximidade com a Igreja. Não há nenhuma família que não tenha um padre que quase faz parte da paisagem, e isso explica-se porque o norte foi evangelizado e influenciado sobretudo pelos beneditinos. A Ordem de São Bento tinha como regra ora et labora, isto é, ‘reza e trabalha’, e os beneditinos trabalharam com as pessoas e ensinaram-nas a trabalhar o campo, tendo-se estabelecido uma enorme proximidade com a Igreja”.

Assim se explica por exemplo, de acordo com Anselmo Borges, que ainda hoje nas terras do norte continue a ocorrer, na Páscoa, a visita pascal, conhecida como ‘compasso’. “Há de facto uma enorme proximidade. O compasso foi instaurado concretamente pelos beneditinos e durava 50 dias – que é o tempo que vai da Páscoa ao Pentecostes –, durante os quais visitavam as famílias. Hoje, no compasso, a família reúne-se para receber o padre, que benze a casa, num ambiente de muita alegria”. Mas a vivência da religião no norte explica-se também de outra forma: é que os povos germânicos tiveram uma presença intensa na região, ao contrário do Alentejo, onde os muçulmanos estiveram mais presentes – até serem expulsos com a Reconquista, que ocorreu na Península Ibérica entre os séculos XII e XIV, pelas Ordens Militares. E os traços genéticos, como assinala o professor da Universidade deCoimbra, confirmam-no. “Ainda hoje, há muitas mulheres no Minho que são louras e têm olhos azuis, o que se explica pela origem que têm dos povos germânicos, como os suevos e os alanos. Os alemães são muito vitalistas, embora não se tenha essa ideia, mas a verdade é que foram eles que inventaram as filosofias da vida e o romantismo. E por isso, estas populações têm uma expressão muito mais alegre e muito mais viva da religiosidade, que se exprime em belas procissões”, de que é evidência, por exemplo, a procissão da Burrinha que todos os anos leva milhares de pessoas ao centro da cidade e conta com 700 figurantes, que acompanham uma burra cujo papel é o transporte da Nossa Senhora do Egipto. “Não quer dizer que os alentejanos sejam menos religiosos, simplesmente não têm a expressão pública religiosa que existe lá em cima”, conclui o Anselmo Borges.

A importância da páscoa

Além do cristianismo, apenas a religião judaica celebra a Páscoa. A origem da palavra, aliás, é hebraica, como nota o teólogo, que explica que tem como significado ‘passagem’. “A Páscoa começa por ser a Páscoa judaica. Os judeus estavam oprimidos no Egito, escravizados, e Deus disse que não gostava de escravidão e que iria ajudar à libertação do povo. E então o povo foi liberto, passou da escravidão do Egito para a liberdade na terra prometida. Já a Páscoa cristã é a passagem também da escravidão para a libertação, mas da última escravidão que é a morte. Portanto, na Páscoa, nós celebramos a passagem da morte à vida plena, com a ressurreição de Jesus”. De acordo com Anselmo Borges, aliás, a Páscoa é “a festa central do cristianismo, e não o Natal, ao contrário do que muitos cristãos pensam”.
Por influência judaica – que se rege por meses lunares – e para aproximação desse calendário, como explica por sua vez o padre José Manuel Pereira, vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, “a Páscoa é sempre celebrada no domingo mais perto da primeira lua cheia da primavera”. Segundo o padre, há mesmo regiões no país, como Belmonte, que celebram a Páscoa “com os rituais judaicos”.

Também o ovo, que por estes dias enche prateleiras de supermercados e lojas, tem uma explicação dada pela religião. “O ovo é símbolo de vida e é por isso que, ainda hoje, as nossas amêndoas têm essa forma. Mas além disso, a Páscoa coincide com o tempo da primavera: quando antes tudo estava aparentemente adormecido e morto por causa do inverno, agora temos a ressurreição da vida, tudo volta à vida, com alegria e esperança – na perspetiva cristã, esperança da vida eterna”, especifica Anselmo Borges.

Quanto à liturgia propriamente dita, se a celebração dos cristãos é feita na igreja, no caso da religião judaica pode não ser assim. “É feita nas casas e não necessariamente na sinagoga”, explica José Manuel Pereira.

Na tradição cristã – que no fundo é a que mais crentes tem por cá –, de resto, a Páscoa é assinalada ao longo de três doas. “É o chamado tríduo pascal. Primeiro, a quinta-feira santa, quando se celebra a Eucaristia: Jesus, percebendo o que lhe ia acontecer, celebrou uma ceia que é a última ceia e naquela última ceia deixou o memorial – o pão, o vinho –, que significa que entregou a sua vida por amor. Foi ainda na quinta-feira que Jesus foi preso e foi condenado à morte na cruz. Na sexta-feira santa, lembramos que Jesus foi crucificado e deu a sua vida por amor a toda a humanidade. Finalmente, o domingo de Páscoa é a celebração da ressurreição. E o que é o sábado? É o dia entre a sexta-feira santa – que simboliza o horror, o sofrimento – e o domingo de Páscoa – símbolo da ressurreição, da alegria da vida. George Steiner diz que é em sábado que nós vivemos, o sábado é o nosso dia, quando realmente vivemos, entre o horror e a incompreensão da sexta-feira santa e a esperança da vida que se celebra no domingo de Páscoa”, conclui Anselmo Borges.