É uma cruel ironia que um homem possa crescer voltado para a glória com que uma época recompensa certos feitos valorosos, e agigantar-se em direção a eles, para acabar, se não envergonhado, quase esquecido numa outra época, sujeito aos caprichos das novas vontades. Morreu Ricardo Chibanga, o único matador de touros africano. Tinha 76 anos e desapareceu na madrugada de terça-feira, na sua casa na Golegã. O toureiro que nasceu num bairro de lata, na antiga cidade de Lourenço Marques (atual Maputo), chegou a ser, na década de 70, um dos grandes vultos da festa brava, tendo deslumbrado em arenas por todo o mundo aficionados como Pablo Picasso, Salvador Dalí ou Orson Welles.
Com 18 anos, em 1962, o rapaz chegou a Portugal. Deixou Mafalala, o bairro indígena bem perto da praça de madeira onde, três vezes por ano, os grandes toureiros da Metrópole iam espalhar o assombro de uma das últimas manifestações artísticas que celebram o lado trágico da existência. Como Michel Leiris refere em Espelho da Tauromaquia, neste espetáculo, “todas as ações executadas são preparativos técnicos ou cerimoniais para a morte pública do herói, que não é outro senão esse semideus bestial, o touro”. Nas ruas onde cresceu, onde a maior parte dos putos assaltavam os descampados em eternas jogatanas em que se afinava o que viria a ser uma época de sonho para o futebol português – recorde-se que Eusébio, Coluna e Hilário vieram também de Mafalala -, Chibanga encantou-se pelas corridas de touros, os fatos de luces envergados pelos matadores. E contra a cegueira daqueles que pretendem reduzir esse formidável embate em que vida e morte trocam golpes e flores a um sinistro gozo com o sofrimento dos animais, nada como recordar a exaltação desta arte nas palavras de João Cabral, no poema “Lembrando Manolete”: “Tourear, ou viver como expor-se;/ expor a vida à louca foice/ que se faz roçar pela faixa/ estreita de vida, ofertada/ ao touro; essa estreita cintura/ que é onde o matador a sua/ expõe ao touro, reduzindo/ todo o seu corpo ao que é seu cinto,/ e nesse cinto toda a vida/ que expõe ao touro, oferecida/ para que a rompa; com o frio/ ar de quem não está sobre um fio”.
Na sequência de um acidente vascular cerebral, Chibanga esteve internado recentemente no hospital de Torres Novas, mas havia regressado à sua casa na vila que o acolheu há muito como a um “filho legítimo”, e que, no seu extremo norte, tem uma rua que lhe é dedicada: “Rua Ricardo Chibanga, Matador de Touros, Aluno da Escola de Toureio da Golegã, que tomou Alternativa na Real Maestranza de Sevilha, em 15 de Agosto de 1971” – lê-se na placa. Berço do cavalo lusitano na região do Ribatejo, a Golegã goza ainda da inclinação da memória, honrando figuras da festa brava como Manuel dos Santos. O matador de touros e empresário taurino que trouxe Chibanga para a vila tem a sua estátua erguida na praça principal, em frente ao Café Central, um dos lugares que o toureiro negro frequentou até ao fim dos seus dias.
Em miúdo, era o ar em volta da praça de touros que sopesava o aroma de um destino. Desde os 14 anos que a fome de algo mais o trazia espreitando pelas frinchas que iam bem mais fundo do que o espaço, atravessando a história daquele estranho espetáculo. Era uma época em que entusiasmava os miúdos fazerem-se escravos das suas paixões. E foi assim que ele e mais alguns ganharam autorização do homem que tomava conta da praça para “limpar o capim, montar as bancadas, correr os hotéis e as praias da Costa do Sol para distribuir panfletos aos turistas publicitando de novo as corridas”, como nos contava Ana Soromenho, em agosto de 2011, numa reportagem da revista do Expresso dedicada ao matador africano.
Nos nossos dias, o funil da cultura de massas levou a que até sonhar se tornasse chato. Os putos de todo o mundo ambicionam singrar pela via mais percorrida. À noite, quando dormem, as avenidas desse mesmo sonho logo acabam congestionadas e, por isso, ficam a milhas dos seus heróis. Veem-nos pela televisão, vislumbram-nos nos aeroportos, à entrada dos hotéis… Mas Chibanga conheceu os toureiros, juntou-se a eles no Café Marialva, na Baixa, onde os aficionados se juntavam. Aos 18 anos, e a trabalhar por temporadas na construção civil, o convite que Manuel dos Santos lhe fez a ele e ao amigo Carlos Mabumba para virem para Portugal não tinha porque ser recusado.
O talento de Chibanga nesse primeiros tempos era só vontade de ser toureiro. Contou a Ana Soromenho como, tendo chegado ao país numa quinta-feira, na sexta, ele e o amigo já eram levados para a Nazaré para se estrearem numa vacada. “Calçaram-nos umas sapatilhas, vestiram-nos umas calças de ganga e puseram-nos no meio das vacas. Eu não tinha a menor noção daquilo”. A escola foi sendo feita nesse treino de habituar-se ao medo, conhecer-lhe as manhas, dominá-lo. À jornalista do Expresso admitiu que, mesmo depois de ter enfrentado e matado dezenas de touros, chegava a ficar dias sem dormir, receando desiludir os aficionados que enchiam a praça para o ver. E nisto se percebe a grosseria de quem, sem buscar compreender o drama tauromáquico, o reduz a uma ênfase brutal. Falta ver como, nesse enfrentamento, o matador busca “a precisão doce de flor”, esse modo de “roçar a morte em sua fímbria”. Quem fecha os olhos e se horroriza prefere não ver essa vertigem desenhada numa geometria decimal, enquanto a emoção e o susto adquirem peso e medida.
Portugal estava bem para se ensaiar, mas Espanha teria de ser conquistada se queria inscrever o seu nome entre os grandes matadores. A primeira tourada de morte em que participou foi em 1968, em San Sebastián de los Reyes, nos arredores de Madrid, mas o dia mais feliz da sua vida foi a 15 de agosto de 1971. Nesse dia saiu da Golegã em direção a Sevilha e Ricardo Chibanga entrou na Real Maestranza, para a corrida que marcou a sua alternativa de matador de touros, tendo sido apadrinhado por António Bienvenida, com o testemunho de Rafael Torres. E como correu? “Triunfou. A praça encheu-se de lenços brancos, pedindo um troféu para o matador negro: uma orelha do touro. No final saiu em ombros”, conta-nos Ana Soromenho. E adianta: “Nessa noite houve um jantar de homenagem no Parque de Maria Luísa, com centenas de convidados, e, na manhã seguinte, Chibanga apressa-se a regressar a Lisboa porque tinha de apresentar-se, agora como profissional, na Praça do Campo Pequeno”.
Viu a morte tantas vezes que, esta terça-feira, ao deitar-se por fim com ela, já ela não tinha segredos para ele. Despiu-a tantas vezes, e deixou a sua figura gravada na memória do público, que o viu tantas vezes ajoelhar-se em frente do touro, nesse limite que causa repulsa a quem mede a vida em termos de sofrimento e conforto, refastelando-se com a decadência desta época, que viu a épica escoar-se pelo ralo.