A redenção do bolor


Para quem quer comemorar meio século de democracia, é mais que tempo de começar. É muito o bolor para higienizar e para circunscrever à sua real existência, acantonada, residual e com aparições periódicas.


O bolor não tem emenda. Pode a evidência da sua existência ser higienizada, com fluidos adequados, que, mais tarde ou mais cedo, ele reincidirá. Muitas das polémicas que alimentam as discussões atuais não passam de bolor. E há bolor à esquerda e bolor à direita.

O problema é que o bolor, para além da lógica da reincidência que alenta o esforço de sobrevivência política, já tem pretensões em constituir-se, ele próprio, elemento higienizador.

Há bolor quando a esquerda procura higienizar a superfície da convergência governativa para exibir um branco efémero, como se não tivesse aposto a sua vontade política, assinatura e comparticipação no que foi feito e no que não foi feito nos últimos anos.

Há o evidente bolor da direita que procura manter a higienização da sua passagem pelo governo, muito além dos compromissos com os credores, para que pareça que a alternativa que vai propor seja um livro em branco, sem herança e sem recaídas. O raio do bolor persiste em reaparecer a cada esquina do sistema bancário, do serviço postal e de tantas outras privatizações em que se perdeu a mão de ter alguma coisa a dizer sobre a sintonia com as pessoas e com os territórios.

Há tudo isto e muito mais, mas o que mais impressiona é o despudor com que o bolor procura a redenção. Para os crentes, será esta a ocasião – afinal, é tempo de Quaresma, mas é preciso não ter pingo. Olha-se para o panorama de protagonistas políticos que emergem nos canais mediáticos para esgrimirem argumentos ou dizer coisas, e não se acredita. Não se acredita que sejam os indigitados pelos partidos políticos para falar e não se acredita que os próprios não sintam nenhum constrangimento em falar, como se o bolor não fizesse parte do seu ADN político, do percurso de intervenção pública ou de circunstâncias pessoais. O bolor fala do bolor sobre a redenção do bolor.

Haverá alguém que acredite que quem cresceu num ambiente favorável ao bolor e o exercitou despudoradamente seja agora capaz de se redimir e contribuir para que, em diversas áreas da intervenção política, o ambiente, a exigência e o escrutínio sejam outros? Alguém acredita que quem podendo ter feito e não fez faça agora, depois das evidências mediatizadas, e impulsione um renovado quadro de referência do exercício político e cívico?

Quarenta e cinco anos depois de Abril, na ausência de um robustecido quadro de valores e princípios, vive-se um tempo em que o que impulsiona a mudança é a denúncia de situações reais fora de um quadro de referência que é, ele próprio, volátil e sujeito a populismos gratuitos. Não se faz por iniciativa, faz-se por arrasto e em alegre exercitar do bolor, seja no poder legislativo, no executivo ou no judicial. Há uma espécie de delação premiada do bolor, em que basta mediatizar uma questão para ser meio caminho andado para haver alguma deslocação das vontades dos decisores.

É um tempo esquisito, demasiado volátil e sem âncoras de senso, de equidade, de sustentabilidade e de sentido de futuro. Para quem queria comemorar meio século de democracia, com sentido de gratidão pelo essencial do caminho percorrido e a perspetivar novos impulsos individuais e comunitários, é mais que tempo de começar. É muito o bolor para higienizar e para circunscrever à sua real existência, acantonada, residual e com aparições periódicas. Não é que o bolor seja alguma vez erradicado da democracia e do exercício cívico e político, mas que os protagonistas políticos deixem de ser magnânimos exemplares do mais refinado bolor.

Quarenta e cinco anos depois de nos vermos livres do bafio do Estado Novo, era só o que faltava que o bolor se instalasse. Pode reaparecer amiúde, mas cumpre aos democratas assegurar mínimos para que nunca se instale em permanência. E tem-se feito pouco e tolerando demasiadas faltas de senso, das nomeações de familiares às opções políticas sem nexo e sem sustentabilidade, passando pela promiscuidade entre a política e os negócios, as acumulações de funções públicas, a falta de renovação dos titulares de cargos públicos ou as profusas opacidades. Portugal precisa de um novo impulso cívico e político, quase 45 anos depois de Abril. Não é o populismo, mas continuam a criar espaço de afirmação para ele. Mais juízo e senso, menos bolor.

 

NOTAS FINAIS

Caruncho. A menos que seja para invocar a ocorrência de algum milagre na gestão escolar, perante a persistência de problemas apesar da enunciada aposta na escola pública, não faz nenhum sentido que estabelecimentos públicos impulsionem realizações religiosa.

Lagarta-do-pinheiro. A disputa pseudolegislativa entre o Governo e a Presidência da República para ver quem vai mais ao encontro da perceção popular sobre o reincidente bolor das nomeações de familiares é só ridícula. Não há senso com a falta de senso.

Nemátodo. A detenção do mentor do WikiLeaks não mereceu dos arautos da defesa do pirata Rui Pinto a mesma ação e verbalização. Confirma-se que quase tudo se resumia a ânsia de mediatismo, uma espécie de angústia do porteiro à beira da porta de saída. Nem uma palavra sobre Julian Assange e muito menos sobre as nomeações familiares, não fossem cair vidros no telhado.

 

Escaravelho da palmeira. A facilidade com que em Portugal se fala do que não se sabe, por preconceito ideológico ou porque se tem de dizer alguma coisa. O SIRESP deixou de dar problemas relevantes quando foram feitos os investimentos que deviam ter sido feitos antes da tragédia de 2017. Tal como em 2017, continua-se a mexer na estrutura da Proteção Civil em véspera de período crítico de incêndios florestais. É mais uma expressão do bolor: não aprender com os erros do passado.

 

Escreve à segunda-feira