À Volta da Loucura. Entre “Jaime” e a videoarte de Artur Moreira

À Volta da Loucura. Entre “Jaime” e a videoarte de Artur Moreira


Com “Jaime”, de António Reis, e sete filmes inéditos de Artur Moreira, um dos artistas do Projeto Manicómio, o Cinema Monumental inaugura neste sábado um ciclo dedicado à loucura.


“Quando entrei no hospital Miguel Bombarda vi numa parede um desenho fabuloso, mas pensei que era uma cópia […] Isto era no meu gabinete, onde eu trabalhava; um dia, passo mesmo ao pé do desenho, verifico que era feito com esferográfica e pergunto de quem era. Dizem-me que era de um senhor que tinha acabado de morrer, por uns meses eu não o conheci. Percebi logo que aquilo era excecional e fomos juntando os desenhos.” Assim explicava Margarida Cordeiro, numa entrevista a Ilda Castro, o início de Jaime, de António Reis, a quem se juntaria na realização de todas as longas-metragens que lhe sucederiam: Trás-os-Montes, Ana e Rosa de Areia. 

Rodado em 1973, a partir desses desenhos de Jaime Fernandes, um doente do hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, retratado no filme através de imagens de arquivo, Jaime teve a sua estreia no Cinema Império, em Lisboa, dias depois do 25 de Abril: logo no início de maio de 1974. É um documentário antropológico que marcou o movimento vanguardista que, nascido em pleno Estado Novo, ficou conhecido como Novo Cinema, que acompanha a busca de Jaime pela harmonia que perdeu, entre o passado na Beira Baixa e os desenhos que faz no hospital em que vive internado. 

Hoje, em 2019, maio de 1974 foi quase há 45 anos. Lugares como o Miguel Bombarda ou o Cinema Império ficaram arrumados no passado. Neste outro tempo, foi a partir de um outro hospital psiquiátrico, o Júlio de Matos, Artur Moreira foi construindo um corpo de trabalho em vídeo que, numa sessão partilhada com Jaime, poderá ser ser pela primeira vez visto neste sábado, a partir das 16h30, no Cinema Monumental.

É a primeira sessão do ciclo “À Volta da Loucura” que, com Jaime e o conjunto das sete obras de videoarte de Artur Moreira, um dos artistas que integram o projeto Manicómio, nunca antes exibidas ao público, tem início neste sábado, no cinema Monumental, em Lisboa. Sem Artur Moreira, que por questões de saúde não poderá estar presente, a sessão terminará com uma conversa com Sandro Resende, diretor do Manicómio – um espaço de trabalho para artistas com doenças mentais que inaugurou este ano, num espaço de co-work no Beato, ao fim de 20 anos a dar aulas de artes plásticas no Hospital Júlio de Matos, onde os dois se conheceram. 

“A ideia desta sessão partiu de conversas com o António [Costa, da Medeia Filmes, que explora o Monumental]”, explica ao i Sandro Resende. Em 2016, ainda o Manicómio não existia, o Lisbon & Estoril Film Festival levou ao Júlio de Matos uma exposição que colocava em diálogo esculturas de uma das artistas, Anabela Soares, com a obra do realizador Emir Kusturica. “Nessa altura, mostrei ao António um par de filmes realizados por doentes e disse-lhe que seria muito interessante fazer uma mostra. Exibimos pela primeira vez alguns deles no LEFFEST. Agora, falei ao António em todo este trabalho inédito que tínhamos do Artur Moreira e assim nasceu esta sessão”. 

Artur Moreira não é o único artista que tem trabalhado em vídeo no projeto Manicómio, que Sandro Resende criou como resposta às limitações que sentiu ao longo dos 20 anos que deu aulas nos ateliês do Júlio de Matos. “Aqueles muros do hospital são por vezes muito estigmatizantes e que os ateliês hospitalares são muito limitados pelo próprio funcionamento do SNS. Trabalhar dentro de uma instituição não permite uma total liberdade ou o registo que temos neste momento no Manicómio, onde os nossos doentes, alguns deles do Júlio de Matos, conseguem produzir e trabalhar com muita liberdade, sem presença de técnicos de saúde, com controlo total do seu tempo e com as refeições e os transportes pagos e uma bolsa de estudo que lhes permite uma sobrevivência – mais do que uma sobrevivência, a dignidade de trabalho.”

No domingo, integrados no mesmo ciclo, são projetados, a partir das 18h, Lilith, de Robert Rossen, e Don’t Get Me Wrong, de Adina Pintilie, numa sessão seguida de uma conversa com Joana Amaral Dias. A primeira parte do ciclo encerra a 20 de abril, às 17h, com As Pessoas Normais Não Têm Nada de Especial, de Laurence Ferreira Barbosa.