“Boa noite, sejam bem vindos. Olá. Agradecemos que se dirijam aos vossos lugares. Obrigada. Olá. Olá.” Se o tom mecânico e robotizado não tivesse bastado para a denunciar logo de início, por esta altura já nos teremos apercebido de que algo não está certo aqui. Ainda não nos sentámos. A partir daqui, e vamos agora na parte em que uma voz movida a inteligência artificial faz uma ronda pelos títulos das notícias do dia. A NASA, a chuva, o granizo e a trovoada dos próximos dias, Portugal como refúgio para homossexuais que fogem do Brasil, segundo o El País. “Esperamos que se sintam confortáveis.”
Confortados não seremos vez alguma por uma voz sem alma. Nem que nos apaixonemos, e virá a Siri, já se suspeitava, confirmar a quantidade de pedidos de casamento que tem recebido nos últimos tempos. Aqui chamaram-lhe Ana Borralho e João Galante “luz interior”. A esta voz que depois do habitual pedido para que os telemóveis sejam colocados em silêncio e com os dados móveis desligados – com o aviso de que mais adiante nos há de ser pedir “o contrário” – nos deseja “um bom espetáculo” e “boa viagem”. Voz de máquina feita protagonista para um espetáculo que não será sobre inteligência artificial apenas, mas sobre o lugar de onde ela veio e aquele para onde nos leva. Daqui não há nada de bom que possa vir.
A começar com um, e logo dois, três, quatro, 18 seres humanos em palco. Sozinhos. Rostos voltados para baixo, iluminados pelas luzes dos ecrãs dos seus telemóveis. Essa luz que se foi tornando parte deles (de nós) até se ter transformado numa quase-alma.
Do fascínio (ou olhar crítico) de Ana Borralho e João Galante com a forma como as novas tecnologias de comunicação estão a transformar modelos e relações sociais milenares a um ritmo alucinante surgiu este Romance Familiar ou a Realidade Aumentada. Uma criação de Ana Borralho e João Galante para ver entre hoje e sábado no Grande Auditório da Culturgest. “Se até ao século XX os dispositivos audiovisuais de consumo popular eram dirigidos às massas, no novo milénio o enfoque é dado a cada cidadão e às suas idiossincrasias. A utilização massiva de equipamentos digitais individualizados em todas as áreas está a criar modos de vida em que a noção do corpo social implodiu.”
Ao longo de quase duas horas, assistiremos, confrontados, ao espetáculo deste novo tempo. Colocar-nos-emos às tantas no lugar dessa “luz interior”. De forma tão estranha como possa ser imaginá-lo, no lugar de uma aplicação, de um telemóvel ou de uma das sabe-se lá quantas bases de dados que diariamente nos armazenam as vidas.
Assistiremos ao espetáculo da fabricação da selfie, do momento de felicidade instagramável. Porque entre nós e o ecrã em que, ao fundo, vão sendo exibidos pedaços de vidas virtuais, há toda a massa humana de realidade. Questionar-nos-emos sobre o que sobrará do mundo real daqui a uns anos, sobre que efeitos terá a individualização levada ao extremo.
Desejaremos muito provavelmente poder um dia apagar ao menos parte da nossa pegada digital. “Tudo está a ser armazenado sem sabermos muito bem para quê”, nota Ana Borralho. Daqui a milhares de anos, para que é que vai servir toda esta informação sobre nós que está a ser armazenada e que não tem necessariamente um propósito?”
E por aqui continuaremos, até ao momento em que nos sentirmos despidos. Tão despidos quanto os 18 intérpretes que, de olhos fixados nos ecrãs se foram despindo e fotografando mais e mais intimamente. E se foram descobrindo uns aos outros, nas suas fotografias, para continuarem a interagir apenas virtualmente no que acabará por ir dar ao que pode até parecer uma orgia, mas não é. Uma orgia regada a champanhe, já agora. Dezenas de garrafas de champanhe, num último grito encenado de felicidade.
Numa espécie de transe, coordenado mas nunca coletivo, nunca em grupo. “O único momento em que realmente há uma possibilidade ali de partilha, de comunidade, é quando partilham o champanhe”, diz Ana Galante. “De repente, já incluo o outro na minha selfie, mas continua a ser tudo para a máquina. Tudo para o vídeo, tudo para a fotografia.”
Pornográfico, talvez seja mais isso do que a encenação de uma orgia neste tempo pelo qual a humanidade se deixou atropelar para só depois dar por isso, e aí vai dar João Galante, em conversa com o i: “Até que ponto é que a nossa sociedade não é pornográfica, até que ponto é que não há um deboche coletivo, até que ponto é que a festa não é uma ficção também?”
Hipnotizados pela contemplação da beleza (pornográfica) que pode ter um banho de champanhe, havemos de nos esquecer da voz, aquela voz da “luz interior” que na verdade nunca saiu de cena e voltará para não nos deixar esquecer. Convidar-nos-á a juntarmo-nos à “festa” que sabemos que não é. Por fim, um espetáculo em que não teremos que desligar o telemóvel – pelo menos não durante o tempo todo, nem tudo é mau neste tempo da inteligência artificial e da realidade aumentada.
É então a vez do público entrar neste chat coletivo a que, ao longo de já mais de uma hora e meia, do palco eles nos foram entregando as suas vidas: de números de cartão do cidadão ao número de irmãos a revelações de medos e segredos protegidas apenas por um nikename. E vai dizer-se o quê num chat depois disto?
Ficha técnica:
Romance Familiar ou a Realidade Aumentada
Uma performance de Ana Borralho e João Galante
Onde Grande Auditório da Culturgest, Lisboa
Quando Qui-sex/21:00, sáb/19:00, até 13 de abril
Preço €6 a €12