Dificilmente outro continente adotou de forma tão natural a bicicleta como meio de transporte como a Ásia. É raro o país cujas cidades não estejam apinhadas de pelotões de milhares e milhares de ciclistas, deslocando-se em todas as direções e nas mais variadas funções. Não é difícil ver um cidadão de qualquer proveniência carregar sobre o veículo uma dúzia de galinhas, um porco ou um pequeno vitelo. Ou mesmo uma família completa, pai e mãe e muitos filhos.
Malaca, que por aqui todos dizem Melaka, onde Afonso de Albuquerque surgiu de surpresa, no ano de 1511, à frente de um exército de mais de 1200 homens, anexando-a à coroa portuguesa, não é exceção a essa cultura ciclística que perpassa por toda a Malásia. Só que, subitamente, no espaço de poucos anos, a Ásia deixou de ser apenas o continente no qual todos se deslocam de bicicleta para passar a ser o continente que absorveu as mais diversas provas velocipédicas do calendário internacional.
Estamos na Malásia para seguir o Tour de Langkawi, prova que teve a sua primeira edição em 1996 e é agora realizada sob os auspícios da UCI, a União Ciclista Internacional. É uma competição classificada como 2.HC, uma das divisões impostas pela confederação e que corresponde, para facilitar a perceção do leitor, à ii Divisão, sendo obviamente da i a Volta à França, a Volta à Itália ou a Volta à Espanha, por exemplo. Desta forma, as provas da 2.HC atraem mais seleções nacionais do que as tradicionais equipas profissionais, embora estas raramente faltem ao chamado.
Nesta edição temos, além das equipas nacionais do Japão, da Malásia e do Brunei, a Gazprom-Rusvelo, a Floyds Pro, a ProTouch ou a Bardiani. Cento e trinta e um concorrentes representam 29 países e 21 clubes. Até dia 13 de abril, oito etapas ligarão Kuala Lumpur a Kuah num total de mais de 1225 quilómetros, para já com o australiano Culey Marcus, da Sapura, a ocupar o palco como personagem principal de uma forma um tanto ou quanto surpreendente.
Invasão Deitando uma vista de olhos no calendário internacional da União Ciclista Internacional, percebemos a forma como a Ásia está transformada num verdadeiro circo ciclístico que vale a pena observar.
Se, neste momento, o Tour de Langkawi recebe o foco das atenções, já 12 provas foram disputadas até ao momento nesta época: Volta à Tailândia, Volta a Tochigi (Japão), Volta ao Omã, Volta às Filipinas, Volta à Indonésia, Tour Belt and Road (Hong Kong), Volta a Fuzhou (China), Volta a Okinawa (Japão), Volta à Baía de Quangzhou (China), Volta a Sigkarak (Indonésia) e Volta a Hainan (China).
Como veem, há muito por onde escolher para os apaixonados asiáticos pela competição velocipédica. E, ainda por cima, estamos apenas a meio do percurso, porque mal termine este Tour de Langkawi inicia-se a Volta ao Sri Lanka. E, depois, mais uma lista a roçar o infinito: Volta ao Japão, PRURide (Filipinas), Volta a Taiyuan (China), Volta a Kumanu (Japão), Volta à Coreia do Sul, Volta às Filipinas, Volta ao Lago Qinghai (China), Test Event of Tokyo, Oita Urban Classic (Japão), Volta a Almaty (Cazaquistão), Volta a Xingtai (China), Volta a Hokkaido (Japão), Volta ao Irão, Jalejah Malásia, Volta a Hong Kong e Japan Cup Cycle Road Race. Até outubro, não há um segundo a perder.
É evidente que a vertente financeira não passa ao lado desta explosão de entusiasmo por um desporto que nunca encantou por aí além os asiáticos. Estudos recentes referem que em Hong Kong, desde 2013, o interesse pelas provas velocipédicas cresceu de 39 para 48% e, no Japão, durante o mesmo período, o crescimento foi superior a 8%.
Mas havia um objetivo bem firme na cabeça dos dirigentes da União Ciclista Internacional: a China e os seus milhões e milhões de habitantes, aos quais se juntam condições económicas invejáveis. Os proprietários dos direitos televisivos da Volta à França olham para o mercado chinês de um forma não apenas ambiciosa, mas certamente gananciosa. De tal forma que já foi posta em cima da mesa a possibilidade de, nos tempos mais próximos, o Tour ter o seu prólogo em território chinês.
Mas, aqui e ali, também há quem se preocupe com o desenvolvimento dos ciclistas asiáticos e com a sua integração cada vez mais maciça no grupo dos mais fortes a nível mundial. Clubes como o Orica-Scott ou o Bahrain-Mérida estão a abrir portas para que as carreiras de jovens asiáticos possam passar por fases de preparação na Europa e pela sua participação nas competições de topo.
O acordo recentemente assinado entre a UCI e os chineses do Wanda Group vai fazer com que a China passe a ter cada vez mais acesso à realização de provas em território chinês, bem como permitir a atribuição a ciclistas chineses de passes que lhes permitam trabalhar em países nos quais o profissionalismo atingiu o seu ponto mais alto.
Não admira que o Tour de Langkawi viva, hoje em dia, a sua fase de maior popularidade. E que tenha recolhido apoios publicitários de todos os grandes patrocinadores da UCI. O acompanhamento televisivo, em direto, da televisão estatal da Malásia, a RTM1, contribuiu para a divulgação dos atletas e das marcas. E a presença em grande quantidade de jornalistas de todo o mundo serve para provar que o caminho não tem retorno.
*Serviço especial