Uma bola de golfe branca com uma pinta preta colocada em Nova Iorque. Na costa oposta do continente americano, os telescópios instalados em Los Angeles conseguem captar a pequena pinta. A imagem permite ter uma perceção do feito que os cientistas alcançaram hoje, ao conseguirem captar a primeira fotografia de um buraco negro – invisível a olho nu -, um dos maiores mistérios do universo, pelo menos até agora.
Os números ajudam a completar o quadro da complexidade da tarefa: as observações utilizaram mais de 60 terabytes de informação por segundo, que foram armazenados em discos rígidos que depois passaram então a informação para o supercomputador que a processou – é que o tamanho dos dados era tal que seria impossível enviá-los para o supercomputador via Internet. Mas há mais números que mostram a dimensão do acontecimento: o projeto Event Horizon Telescope (EHT), que tornou possível o registo inédito através de oito radiotelescópios colocados em vários pontos do globo, tem uma equipa com mais de 200 investigadores de África, Ásia, Europa, América do Norte e América do Sul que nos últimos 13 anos trabalhou para este objetivo e conta com a participação de mais de uma dezena de entidades internacionais.
“A imagem da bola de golfe dá uma pequena ideia da capacidade de resolução desta observação. Estamos a falar de técnicas notáveis de processamento de dados, que neste caso estão a ser aplicadas na astronomia, mas tenho a certeza de que vão ser aplicadas noutras áreas. Todos os radiotelescópios recolheram um bocadinho da imagem do buraco negro e depois os dados de cada um deles foram adicionados para formar uma imagem única num supercomputador ”, explica ao i o astrónomo Miguel Gonçalves, coordenador nacional da Sociedade Planetária, a maior agência espacial não governamental do mundo.
A imagem do buraco negro supermaciço, localizado na galáxia M87, foi revelada poucos minutos depois das 14h em seis conferências de imprensa simultâneas que decorreram Bruxelas (Bélgica), Santiago (Chile), Washington (Estados Unidos da América), Xangai (China), Taipé (Taiwan) e Tóquio (Japão). Todo o trabalho é detalhado numa série de seis artigos científicos publicados num número especial da revista The Astrophysical Journal Letters e veio confirmar, uma vez mais, a Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein. O cientista postulara que os buracos negros seriam regiões no espaço com uma densidade tão elevada que nem “a luz, que tem uma velocidade de 200 mil quilómetros por segundo, conseguiria escapar ao poder gravitacional de um buraco negro”, explica o especialista. A imagem do fenómeno – que até aqui só tinha sido reproduzido pela mão humana e nunca fora fotografado – mostra semelhanças com as que têm sido reproduzidas nos livros há mais de 100 anos, quando em 1905 Einstein publicou a teoria: um anel de luz brilhante circundando a sombra. Porquê um anel de luz? Einstein também explicou: se o buraco negro está rodeado de material que emita luz, como o plasma, algum desse material deve criar uma sombra ou um contorno do buraco negro e da sua fronteira, também conhecida como horizonte de eventos.
Quando falou com o i, antes da conferência de imprensa, Miguel Gonçalves tinha precisamente abordado a importância que este “teste”, como lhe chamou, iria ter para a validação da Teoria da Relatividade Geral. “A Teoria de Einstein, que até hoje tem passado em todos os testes, tem sido validada, e portanto o teste maior acaba por ser este. Vamos ver como é que na fronteira – a fronteira mais extraordinária, que é a de um buraco negro – se aplica ou não também a Teoria da Relatividade Geral. Se bater certo, lá estamos nós outra vez a dar os parabéns a Einstein. Se houver discrepâncias, a questão é tentar perceber se vamos ter de fazer ajustes na teoria de Einstein ou se a própria teoria está errada. Não há propriamente teorias sagradas em ciência, têm todas de passar nestes testes”, referiu, quando se preparava para assistir ao streaming da conferência de imprensa em sua casa, em Castelo Branco.
O maravilhoso mundo dos buracos negros O buraco negro agora capturado tem um diâmetro de 100 mil milhões de quilómetros, mas o anel de luz em seu redor aumenta à medida que se expande. E os números continuam a impressionar: a massa do sol é 1,989 × 1030 quilogramas, mas a massa deste buraco negro é 6,500 mil milhões de vezes a massa do sol. E a galáxia M87, em cujo centro se localiza, fica a 53,4 milhões anos-luz da Terra.
Mas o que é exatamente este fenómeno? Em termos simples, um buraco negro corresponde à fase final da vida de estrelas de grande massa. “Uma estrela com oito a vinte vezes a massa do sol, à medida que caminha para o seu final, vai tornar-se um bocadinho maior – uma supergigante vermelha – e quando deixa de ter capacidade de equilíbrio entre a gravidade e a radiação, explode. O resultado dessa explosão, em estrelas com essa massa, é o buraco negro. Há um colapso gravitacional da estrela, em que toda essa massa está reunida numa pequeníssima zona do espaço, e isso forma uma densidade tão elevada, uma gravidade tão elevada, que nada escapa”, elucida o coordenador nacional da Sociedade Planetária.
O mistério dos buracos negros explica-se em parte porque, neles, a física dita clássica não tem lugar e as suas leis quebram-se, verificando-se uma deformação do espaço-tempo. Mas o mistério adensa-se ainda mais porque se acredita que não é possível sair do interior de um buraco negro – ainda que, numa conferência em 2015, o físico Stephen Hawking tenha especulado que há uma saída e que se o buraco negro for suficientemente grande e estiver a girar, pode levar a um universo paralelo.
Ainda assim, a comunidade científica tem desvendado partes do mistério: “Hoje sabemos que os buracos negros não são todos iguais, temos buracos negros pequenos, médios e grandes, e fazer a descrição, quilómetro a quilómetro, de um buraco negro, é uma grande ambição para percebermos como é que funcionam estes monstros”, refere Miguel Gonçalves. Mas não só: “Sabemos também que provavelmente no centro da maior parte das galáxias – nomeadamente de espirais como a nossa Via Láctea -, deve habitar sempre, pelo menos, um supermaciço buraco negro – no caso da Via Láctea, é Sagittarius A, com cerca de quatro milhões de vezes a massa do sol. E sabemos, ainda, que os buracos negros são fundamentais para perceber a própria evolução das galáxias e o nascimento de estrelas nas galáxias, porque os buracos negros emanam ventos muito poderosos que, de acordo com as últimas investigações, podem até influenciar a taxa de natalidade de estrelas de uma galáxia. São autênticos motores das galáxias”.