Joaquim Sousa, ao contrário dos mais bem-dotados funcionários públicos deste país, não recebe ordenados chorudos. Bem pelo contrário, este homem formado em Geografia e que aprofundou os seus conhecimentos em Estudos Europeus e Gestão e Administração Escolar (e que, ao contrário dos melhores dirigentes socialistas, tirou mesmo um canudo), foi durante vários anos presidente do conselho executivo da EB123/PE do Curral das Freiras. O Curral das Freiras é uma localidade no interior profundo da Madeira que, nos censos de 2011, tinha menos habitantes que o número de anos pretéritos desde o nascimento de Jesus Cristo, e da qual, entre outras coisas, não se consegue ver o mar. Por exemplo, metade das famílias da zona não têm internet em casa e 92% dos alunos beneficiam de Ação Social Escolar. Em 2010, a escola do Curral das Freiras era tão-somente a sétima pior do país nos exames nacionais. Contudo, enquanto muitas pessoas viam uma paisagem montanhosa com pouco ou nada para investir, Joaquim, por sua vez, viu reunidas as condições para fazer um trabalho formidável. E assim fez. Surpreendentemente, esse é o exato motivo que o fará estar os próximos seis meses sem ordenado e é esse o motivo que o arrastará num processo judicial que procurará enlamear o seu nome e o seu currículo e que tentará esvaziar a sua conta bancária.
Este senhor propôs-se testar uma tese que muitos esquerdistas gostariam de abafar: a de que o sucesso escolar é mais dependente da gestão da escola do que do contexto socioeconómico dos seus estudantes. Esta tese, apesar de axiomática com o crescimento da classe média ao nível mundial, vai contra os dogmas daqueles que gostam de perpetuar a luta de classes e que exigem mais dinheiro para todo e qualquer organismo do Estado. Portanto, ele dedicou-se, com pouco dinheiro, a provar a sua tese no mais improvável dos lugares. Quando ele chegou, em 2010, a escola era 1207.a no ranking nacional e a Secretaria Regional da Educação (SRE) não tinha nenhum problema com isso. Joaquim Sousa adaptou os horários da escola ao dos autocarros, aboliu os TPC, fomentou as atividades extracurriculares relativas não só ao desporto, mas também às artes, e fez isso tudo sem precisar de tocar campainhas para marcar o início das aulas. Adicionalmente, não tratou todos os alunos por igual, i.e., os planos de recuperação dos alunos malsucedidos eram feitos à medida das suas necessidades, e não da forma generalista a que a maioria das escolas está habituada.
Em meros cinco anos, a escola de Curral das Freiras tornou-se a 12.a melhor do país, tendo estado presente no triunvirato das melhores escolas no exame nacional de Português do 9.o ano e no top-10 de Matemática para o mesmo ano letivo. O país, sedento de valores que se afirmem sem favorecimentos, deu mediatismo a todos os níveis a Joaquim Sousa, que em pouco tempo teve direito a destaque na Fundação Francisco Manuel dos Santos, recebeu um prémio da Fundação Montepio e outro da Corações com Coroa, entregue na Fundação Calouste Gulbenkian, onde esteve lado a lado com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. E, como “a inveja é um sentimento muito feio”, como diz Ângelo Firmino, de repente, a SRE passou a ter um problema com isso.
Um mero dia após ter ganho a reeleição para presidente do conselho executivo, a SRE extingue o conselho executivo da escola e segue para bingo, fundindo a escola do Curral das Freiras com a EB 2,3 de Santo António, no Funchal. Não contentes com a abjeta decisão de destruição de capital humano, de motivações tão velhas como as de Caim, a SRE foi ainda mais ao fundo da sarjeta e decidiu abrir um processo disciplinar, do qual Joaquim Sousa já foi considerado culpado, por crimes tão graves como (agradecimento prévio a Bárbara Reis, do Público, pela tradução de “burocracês” para português):
● Mandar horários por email, ao invés de em papel carimbado;
● Pedir a professores para ajudarem mais umas horas alunos acabados de chegar da Venezuela que não falam português;
● Apoiar os pais que tinham de ir para o emprego mais cedo ou voltar mais tarde do mesmo, permitindo aos filhos não ficarem do lado de fora da escola à espera que a escola abra, ou à espera que os pais cheguem, respetivamente;
● Dar horas a menos nas disciplinas de Matemática e Português e horas a mais em apoios a essas disciplinas (verificou- -se um efeito nocivíssimo nas notas dos alunos, como os rankings demonstram);
● Pagar horas extraordinárias a professoras através de dias de férias que estes tinham previamente aceitado.
Enfim, que podemos dizer? Que esta nota de culpa é o sonho molhado de qualquer burocrata. Que melhor pode haver para um burocrata a sério do que conspurcar o bom-nome e a reputação e devassar a vida familiar duma pessoa claramente mais competente do que ele próprio? Nada. A não ser talvez levá-lo à bancarrota porque, se calhar, é isso que o salvamento da sua honra lhe irá custar. Para se salvar a si da humilhação a que foi sujeito, Joaquim Sousa irá, muito provavelmente, fazer de tudo para limpar o seu nome, algo em que estou certo que será muito bem-sucedido. Contudo, irá penar seis ou sete anos num processo em tribunal que o arrastará até aos confins do mundo judicial.
Neste caso há uma ironia muito esclarecedora das motivações do processo. No exercício em burocracia acima descrito, nos dois primeiros pontos da nota de culpa, acusam-no como presidente do conselho executivo da escola, mas nos subsequentes tratam-no como se fosse diretor da escola. Deixo para os burocratas, nomeadamente para a instrutora Sílvia Carvalho, a análise dessa diferença de cargo, mas regozijo-me por dizer que apesar do enorme esforço praticado na cadeira de “Burocracia e Outras Minudências que atrasam o Desenvolvimento do País”, a nossa querida Sílvia teria apenas um “8”. Desculpem, um “2”! É que a escola é só até ao terceiro ciclo, e eu não quero apanhar um processo disciplinar por “atribuição de classificação final, também conhecida como ‘nota’, utilizando matriz de avaliação desadequada e não previamente aprovada pelo Conselho Pedagógico, pela SRE e pelo Ministério da Educação, tal como indicado de acordo com o disposto no Decreto-Lei XX/YYYY”.
Uma analogia que espelha o que eu sinto em relação ao excesso de familiares socialistas em cargos públicos, e o caso de Joaquim Sousa é o do Real Madrid do início do século. Na era dos “galácticos” (Ronaldo, Figo, Zidane, Roberto Carlos, Beckham, etc.), Florentino Pérez prometeu criar uma equipa de “Zidanes y Pavones”. Para quem carece de conhecimento futebolístico, Zidane simbolizava o jogador feito, não formado no clube, mas de classe mundial cuja entrada no onze tinha um efeito imediato no coletivo. Pavón era um produto da academia do Real Madrid para quem se auspiciavam grandes glórias, apesar da tenra idade. Pérez desistiu da ideia assim que percebeu que Pavón era só medíocre. Optou exclusivamente pelos Zidanes. Mas Portugal, não. Portugal continua a desperdiçar os seus Zidanes, pagando-lhes ao preço de Pavones, enquanto contrata Pavones ao preço de Zidanes.
Analista de mercados, membro do gabinete de estudos do Aliança