Rostos dos Despejos. Uma luz ao fundo do túnel?

Rostos dos Despejos. Uma luz ao fundo do túnel?


Um ano depois de a iniciativa ter sido apresentada, já foram feitos vários avanços, garante Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. Mas ainda há muito a fazer. Autarca e moradores prometem não desistir.


Vários rostos, vários testemunhos, um só objetivo: denunciar os despejos no centro histórico de Lisboa a favor do alojamento local. A iniciativa – “Os Rostos dos Despejos” – pertence à Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, e celebrou recentemente um ano. O balanço é positivo, mas há ainda há muito para fazer.

Na cerimónia, que decorreu no Palácio da Independência, Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, anunciou números que considerou alarmantes: em 2013, aquela freguesia contava com 43 alojamentos locais. Seis anos depois, o número chegou aos 4498 o que, segundo o presidente, significa um incremento de 92%. No mesmo período de tempo, Santa Maria Maior já perdeu 20% da população. 

Durante a celebração deste primeiro ano da iniciativa foi apresentado o documentário Rostos dos Despejos – Um ano Depois com vários testemunhos emocionados de quem quase perdeu o que de mais valioso tinha.

Um ano depois, várias leis foram alteradas, o que permite aos habitantes estarem mais protegidos – e muitas das propostas da junta de freguesia já estão a ser aplicadas. Mas ainda há muito para fazer. Pelo menos é isso que defendem não só os habitantes como Miguel Coelho, Helena Roseta, deputada à Assembleia da República e presidente da Assembleia Municipal de Lisboa e Paula Marques, vereadora da Câmara Municipal de Lisboa, presentes na sessão.

“Eu não desisto. Conseguimos proteger as pessoas com mais de 65 anos. Tínhamos uma proposta que [defendia que] era preciso proteger as famílias com crianças e jovens em idade escolar. Não passou, mas é esse o meu próximo objetivo. Não posso dizer que vá conseguir, que vá ganhar mas eu não vou desistir e vou continuar a lutar por esse objetivo”, garantiu Miguel Coelho, que foi aplaudido com fervor pelos presentes.

Testemunhos emocionados Lágrimas nos olhos mas também alguns sorrisos nos rostos. Assim, em silêncio, se assistiu ao documentário apresentado no Palácio da Independência. Os despejos e o aumento do turismo e dos alojamentos locais pode estar longe de acontecer, mas presidente da junta de freguesia e habitantes prometem uma luta cerrada.

“Alfama está morta! Cresci aqui a ouvir pregões, pessoas, estivadores… Agora não se ouve nada!”, lamenta Natália, no documentário.
A tristeza continua com o depoimento de Alzira Paixão. “É muito triste porque é uma vida, são muitos anos. Se tiver que sair daqui não sei se aguento”, diz.

E é com vários testemunhos como estes que o documentário, que já pode ser visto online, pretende alertar para esta situação vivida não só em Santa Maria Maior como em outras freguesias vizinhas.

Denunciar alojamento local ilegal Durante a cerimónia, Miguel Coelho anunciou uma medida que, garante, é pioneira no panorama atual.
Trata-se de uma linha direta, ativa a partir de hoje, através da qual se podem denunciar estas situações. O número – 800 21 00 05 – permite que qualquer pessoa ligue, de forma gratuita, para dar conhecimento de casos de unidades de alojamento local não licenciadas, funcionamento irregular ou abusivo ou ainda o não cumprimento da legislação aplicável atualmente em vigor.

Esta linha tem como objetivo “permitir às pessoas que nos comuniquem onde estão a abrir alojamentos locais para podermos verificar. Se não estiverem dentro da lei comunicaremos à ASAE, à Câmara Municipal e às entidades competentes”, explicou Miguel Coelho.

Controlar Alojamento Local A medida anunciada por Miguel Coelho visa ajudar a cumprir a lei que permite aos municípios controlar o alojamento local. Bairro Alto, Madragoa, Castelo, Alfama e Mouraria são bairros históricos onde já existem limitações neste tipo de alojamento, medida que dá às câmaras o poder de limitar a criação de novas unidades de arrendamento de curta duração. Agora, juntam-se a Graça e Colina Santana.

Para evitar a expulsão de moradores dos centros históricos, também a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia anunciou criar um regulamento para limitar o alojamento local. 

Testemunhos

Lígia Paiva, 75 anos

Há 15 anos que Lígia Paiva, de 75 anos, vivia no n.º 18 da Rua Norberto Araújo, em Alfama, no 2.º esquerdo.
No ano passado foi informada de que tinha de abandonar a sua casa e entrou em pânico. “Comecei a chorar e entrei em pânico. São 75 anos que tenho, isto não se faz”, recordou ao i.

Depois de pedir ajuda à Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e de concorrer às casas da Câmara, Lígia Paiva conseguiu um novo lar e, apesar de toda a frustração por ter de deixar a sua ‘casinha’, não está insatisfeita. “Vou e vou muito bem. Saio de cabeça erguida, nunca fiquei a dever um tostão que fosse”, garante. “Disseram-me que tinha de sair até ao dia 30 de abril e é exatamente isso que vou fazer. Mas só entrego a chave no dia 1 de maio”, diz.

A nova casa, situada também no coração de Lisboa, tem vista para o mar. “Tenho vista para o mar, é uma vista maravilhosa”, conta com um sorriso nos lábios.

Eduardo Correia, 83 anos

Eduardo Correia é um dos Rostos dos Despejos que surge no documentário apresentado. Em representação da mulher e arrendatária da casa, que não pode deslocar-se da sua habitação, lutou com toda a garra que tem pelos seus direitos. “Ela nasceu onde ainda moramos há 82 anos e queriam pôr-nos na rua!”, conta com voz rouca. “Mas o presidente da Junta de Freguesia [de Santa Maria Maior, Miguel Coelho] deu o peito às balas, agitou toda a comunicação social e as coisas começaram a ficar melhores”, explica. “Ia morrendo, fiquei muito preocupado e só pensava: ‘Para onde é que eu vou com esta idade?’”. Com a ajuda do presidente da Junta de Freguesia e com o Gabinete Jurídico da Junta, a quem muito agradece, conseguiram adiar a situação até que o Governo aprovou uma lei  que prevê que os inquilinos com mais de 65 anos e que vivam há mais de 25 na mesma casa arrendada não vão poder ser despejados pelos senhorios. Foi um alívio, garante Eduardo Correia. “Agora já posso dormir descansado”, conclui.

António Marques e Maria Lucinda Marques, 72 e 71 anos

O casal reside na Calçada Agostinho de Carvalho e por lá vai continuar. Mas os últimos tempos não foram fáceis e deram-lhes grandes dores de cabeça. “Queriam [o advogado do proprietário do prédio] realojar-nos, mas queriam dar-nos uma cave, um T0. Onde é que isto já se viu?”, contam, indignados. A morar no mesmo local há 42 anos, com a ajuda da Junta e com a mudança na lei da habitação, vão continuar a residir no mesmo local. “Para já dormimos descansados. Ainda não nos disseram mais nada”, explica o casal de septuagenários.

Maria Alzira Duarte, 73 anos

Maria Alzira é, há muitos anos, vizinha de António e Maria Lucinda Marques e relata uma situação semelhante. “Quando vim para aqui morar, tinha 19 anos. Moro aqui há 50 e tal”, começa por dizer. “Este prédio já foi vendido muitas vezes e a minha casa era da minha mãe. Quando ela faleceu, enviei uma carta, mas não me ligaram nenhuma”, diz revoltada. “Eles querem que as pessoas saiam e até dizem que dão casas. Mas dão-me um T0 e eu tenho um T3”, sendo este um dos motivos pelos quais não aceita a mudança. Depois de muitas conversas com o representante do proprietário do prédio, que continua a insistir na saída de Maria Alzira, o cenário mantém-se: não voltou a ser contactada, mas garante não sair a não ser que lhe seja proposto um acordo justo.

Ana Luísa Araújo, 44 anos

Ana Luísa Araújo já pode sorrir e dormir descansada – isto depois de um grande susto. Nascida e criada no Castelo, recebeu uma carta dos novos senhorios: tinha três meses para abandonar a sua casa.

Confessa que ficou sem saber o que fazer, uma vez que tem três filhas menores, a mais nova com cinco anos. “Fui logo à Junta e fiquei sinalizada como vítima dos despejos”, diz. Garante que a iniciativa Rostos dos Despejos, na qual participa, foi uma grande ajuda e hoje tem, como se costuma dizer, “a vida orientada”. Ana Luísa e as filhas já estão a morar na nova casa, na Baixa que, apesar de não ser no mesmo local, não fica longe. “Moro no centro histórico por opção. Se não quisesse, não morava. Somos nós que fazemos os bairros e agora, finalmente, já consigo respirar de alívio”, termina.