No verão de 2017, quando Portugal era abalado pelas mais trágicas consequências dos incêndios florestais, David Wallace-Wells pulicava um terrífico balanço das consequências das alterações climáticas para a vida no planeta, num artigo que ocupou todas as páginas da New York Magazine, chamado “The Uninhabitable Earth”. Esse mesmo título é o nome do livro que publicou há alguns meses, em que vai mais longe na descrição da crise climática, e em nenhum momento poupa o leitor aos mais aterradores cenários que se perspectivam não apenas dentro de algumas décadas, mas num futuro que sentimos cada vez mais a respirar contra a nossa nuca. A coisa torna-se de tal modo dramática que, consciente dos efeitos que a leitura do seu livro tem no leitor, pela sucessão de dados recolhidos em pesquisas ou de entrevistas a cientistas, um pouco para lá do meio do livro, Wallace-Wells dirige-se directamente ao leitor para lhe elogiar a “bravura” de ter conseguido aguentar até ali.
Não se trata de um trabalho que se alongue em especulações, é antes um meticuloso levantamento das condições de vida com que poderemos contar nos próximos anos se não forem tomadas acções drásticas para reduzir as emissões de dióxido carbono para a atmosfera. Num desvio que ilustra bem o problema, o editor adjunto da New York Magazine diz-nos que, das tantas conversas que foi tendo com os cientistas, um tópico que amiúde ia surgindo era de que o fenómeno do aquecimento global se apresentava como a solução mais provável para o famoso paradoxo de Fermi, esse que se interroga perante a ausência de provas de vida extraterrestre, sendo certo que, dada a enormidade do universo, faria sentido que houvesse vida inteligente noutros planetas que não este. A solução, segundo os cientistas, passará por entender que o tempo de vida de uma civilização talvez não ultrapasse alguns milhares de anos, ao passo que uma civilização industrial estará condenada a não persistir por mais do que alguns séculos. Assim, mesmo num universo que contenha infinidades, multitudes, e resista há biliões de anos, nos seus sistemas estelares separados pelo tempo e pelo espaço, é natural que as civilizações emerjam e prosperem, acabando eventualmente por definhar a um ritmo demasiado vertiginoso para que possam coincidir e cruzarem-se.
“The Uninhabitable Earth”, sendo uma obra tão mais exasperante por não ceder espaço às tentações para as quais o nosso imaginário gosta de balançar, consegue criar um quadro que humilha o hoje tão popular género de ficções apocalípticas, com mais ou menos zombies, ou o estilo de distopias que se passam já do outro lado do horizonte, com os personagens a digladiarem-se por restos entre as ruínas desta civilização. Wallace-Wells sugere que esta abundância de ficções que ensaiam e se divertem com hipóteses de catástrofe, talvez sejam o resultado de uma espécie de deslocação da ansiedade colectiva em relação às consequências deste cerco de distúrbios em consequência da variação climática. E se um livro como este se oferece como um excelente susbtituto para os leitores que regozijam perante asfixiantes cenários de catástrofe, sendo mais arrepiante e muito mais realista do que os mais inspirados ficções de terror, Wallace-Wells sublinha que isso apenas nos mostra que, a partir do momento em que contemplamos os perigos reais que advém deste desafio existencial, depressa nos damos conta de que, afinal, a nossa imaginação não é tão prodigiosa quanto isso. E apesar de, nos últimos anos, terem surgido uma série de romances e ficções que têm como de fundo as alterações climáticas, em mais de três décadas desde que se sabe que este asteróide de impacto difuso cumpre a sua trajectória em direcção ao planeta, não há ainda uma obra-prima que tenha ferido o imaginário colectivo da forma como o fizeram alguns livros de Stephen King ou “Jaws” de Steven Spielberg, um sucesso de bilheteira que gerou paranóia em relação a um animal bem menos inquietante do que o aumentodo nível do mar. E, no entanto, se é certo que o aumento do nível do mar é um dos perigos mais reconhecidos, se sabe que só essa consequência provocará uma mortandade e danos suficientes para humilhar qualquer outra ameaça com que nos deparámos nas últimas décadas, nem isso espicaçou o suficiente a nossa imaginação. E note-se que, além de umas 600 milhões de pessoas viverem hoje em habitações a menos de dez metros da linha costeira, um terço das cidades mais populosas do mundo situam-se na costa, isto para não falar dos portos, bases navais e tantas outras industrias que dependem dos canais com ligação ao mar. De resto, mesmo as cidades que estão resguardadas do aumento do nível do mar, ver-se-ão à mercê dos humores do clima de uma forma inédita. Pense-se nas inundações que estão por vir.
Mas Wallace-Wells faz questão de frisar que a ameça do aumento do nível do mar, se é certamente uma das frentes mais graves, deixa a uma boa parte das pessoas que seguem o debate sobre as alterações climáticas com calculada e mesmo defensiva reserva, a julgarem que não serão afectados como as populações mais pobres e que vivem em áreas mais expostas. Dirigindo-se àqueles que ainda estão algo cépticos em relação ao nível de alarme que a comunidade científica tem tido o cuidado de dosear, esta é aprimeira frase do livro: “É pior, muito pior, do que podes imaginar.” Não é apenas uma variação drástica dos valores máximos e mínimos registados ao longo do ano, sendo que se têm erificado níveis de frio capazes de congelar as pessoas, ou temperaturas tão quentes que as estradas derretem e as linhas ferroviárias que irão curvar, ou as secas que neste momento arrasam zonas cada vez mais vastas e por períodos mais prolongadas, há uma série de perigos que nos vão atacar vindos de ângulos insuspeitados, e uma vez que com este artigo não temos o espaço nem pretendemos alinhar toda a série de ameaças que concorrem para nos levar a querer pensar noutra coisa, sob o risco de não dormirmos descansados logo à noite ou, até, entrarmos em depressão, talvez possamos focar-nos num dos riscos mais espantosos, desses que facilmente aguçam os dentes do nosso imaginário na hora de construir pesadelos. Como as árvores, com os seus anéis, funcionam como um livro de registros selvagem e útil numa escala de décadas, o gelo também tem na sua arca a história congelada, mas numa escala que provoca vertigens aos seres vivos. O problema é que essa arca não conserva apenas os registos, mas tem capturada uma colecção fabulosa, um bestiário escabroso. Como Wallace-Wells explica, estão neste momento capturadas e contidas no gelo do Ártico doenças que não circulam no ar há milhões de anos. Em alguns casos, são o tipo de ameaças que precedem até a existência da raça humana, e, por isso, o tipo de ameaças frente às quais o nosso sistema imunitário não terá a menor ideia de como montar uma defesa, pois em toda a linhagem genética não há registos do que fazer frente as estas pragas pré-históricas. Assim, quando elas emergirem do gelo, desta vez seremos nós os índios, completamente indefesos perante essas gripes do passado.
No Alasca, equipas de investigadores já deram com resquícios da gripe que, em 1918, infectou cerca de 500 milhões de pessoas, tendo matado 100 milhões – o que, na altura, representou uma baixa de 5% na população mundial. Com esta conversa não estamos a fazer mais do que piscar o olho ao abismo, e Wallace-Wells lembra que nem são as doenças do passado o que tira o sono aos epidemiologistas, mas outros flagelos que podem agora deslocar-se, explorando outras regiões do globo, ou até evoluir devido ao aquecimento. Portanto, e mesmo que o arsenal infeccioso do passado não nos cause grande mossa, as alterações climáticas significam uma reorganização geográfica. E se no início da era moderna, quando os exploradores andaram pelo mundo e trocaram bactérias, vírus entre outros cumprimentos mais ou menos calorosos, o clima funcionou como aprimeira linha de defesa contra pandemias à escala global. Ora, como o autor nos explica, mesmo com a globalização e a enorme mistura de populações, a estabilidade dos escossistemas tem funcionado como um limite que o aquecimento está a sabotar. Segundo os cientistas, esta instabilidade terá um impacto tão grande como aquele que teve Hernán Cortés, o conquistador espanhol menos conhecido hoje pelos seus feitos do que por ter destruído o Império Asteca de Moctezuma II, e muito menos devido à sua brutalidade do que ao efeito das gripes que transportou para o novo mundo. “Se hoje, não te preocupas assim tanto com as epidemias do dengue ou da malária”, isso é porque vives nalgum ponto geográfico onde estas não se dão muito bem, diz Wallace-Wells, “mas à medida que os trópicos se estendem para norte, os mosquitos aproveitam a boleia, migrando com eles. E se sabe que a Malária, por exemplo, se dá melhor nas regiões mais quentes, não apenas porque são essas as zonas de recreio dos mosquitos que acarregam, mas porque a cada aumento de um grau na temperatura, este parasita reproduz-se dez vezes mais depressa. Assim, e para acabar, deixamos que o leitor fique amascar esta pastilha de sabor bem amargo: O Banco Mundial estima que até 2050, 5,2 mil milhões de pessoas tenham perecido, ou, com sorte, sobrevivido a ela.