O destino pode ser incerto e o caminho indefinido, mas depois de uma viagem de carro ao longo de várias horas e com largos quilómetros percorridos, um desfecho é incontornável: dificilmente contabilizáveis, um sem número de insetos são visíveis, esmagados, no vidro dianteiro e no capot. Poucas serão as pessoas a quem a imagem não é familiar, mas o que também algumas podem já ter reparado é que a quantidade de insetos, hoje, a decorar a pintura no final da viagem parece ser menor do que era há uns anos. E segundo aponta a ciência, essa perceção dificilmente estará errada: é que os insetos – há cerca de um milhão e meio de espécies catalogadas, mas acredita-se que existam muitas mais – como dão conta vários estudos que têm vindo a ser publicados nos últimos anos, estão a desaparecer. E isso tem consequências desafiantes para a humanidade.
A mais recente investigação sobre o fenómeno foi disponibilizada online no final de janeiro deste ano e publicada na edição deste mês da revista Biological Conservation. O título, Worldwide decline of the entomofauna: A review of its drivers, dá logo à partida o desaparecimento destes animais como certo e o artigo é certeiro relativamente aos responsáveis: destruição de habitat para agricultura intensiva e urbanização em primeiro lugar, seguindo-se a poluição pelo uso de pesticidas e fertilizantes, as espécies introduzidas e as alterações climáticas – tudo, portanto, fatores decorrentes da ação humana.
De acordo com as contas dos investigadores Kris Wyckhuys, da Academia de Ciência e Agricultura de Pequim (China), e Francisco Sánchez-Bayo, da Universidade de Sidney (Austrália) – que ao jornal britânico The Guardian lembrou uma viagem recente com a família, na qual percorreu cerca de 700 quilómetros sem usar o para-brisas uma única vez para limpar o vidro, quando era obrigado a fazê-lo constantemente há alguns anos –, quase metade das espécies estão em declínio e um terço estão ameaçadas de extinção. Para chegar aos números e às causas do fenómeno, o estudo – que é o mais exaustivo e aprofundado já realizado –, serviu-se da análise de 73 investigações sobre o declínio de insetos em várias partes do mundo. E as conclusões não deixam grandes alternativas: “A menos que mudemos o nosso modo de produzir alimentos, os insetos como um todo vão enveredar pelo caminho da extinção em poucas décadas”, escrevem os investigadores, que referem ainda que “a restauração de habitat, aliada a uma redução drástica de produtos agroquímicos e a uma reformulação agrícola é provavelmente a forma mais eficaz de parar mais decréscimos, particularmente em áreas de agricultura intensiva”.
O que esperar da diminuição dos insetos?
É certo que a imagem de insetos esmagados no capot pode ser desagradável, especialmente porque não é fácil retirá-los, mas é a sua ausência que é um motivo real de preocupação. Ao i, o entomólogo José Alberto Quartau, que se dedica há mais de quatro décadas ao estudo dos insetos, não tem dúvidas de que estes animais estão em declínio e confirma que o cenário que se verifica é fundamentalmente causado pelo homem. “Houve cinco grandes extinções, catastróficas, em que a biodiversidade baixou tremendamente durante a história evolutiva do planeta, e nós estamos agora na sexta, que é fundamentalmente causada pelo homem. E os insetos estão a sofrer particularmente os seus efeitos”, explica ao i.
Se agora as consequências da ação do homem sobre os insetos estão a tornar-se cada vez mais evidentes, a verdade é que isso é tão antigo quanto a própria humanidade. “Quando o Homo sapiens aparece na cena evolutiva, já os insetos cá estavam há milhões de anos. Entrámos em competição com eles fundamentalmente após uma das primeiras revoluções, que foi a revolução agrícola: o homem usou o fogo para desbastar terreno para depois cultivar plantas e aí começou a entrar em conflito com os insetos, que já ocupavam essa áreas. Por um lado, o fogo matava os insetos, e por outro destruía os habitats”, elucida o especialista, que assinala que essa ação acabou por atingir “proporções terríveis”, especialmente a partir da década 1940. “Foi quando se começou a luta química, com a utilização dos inseticidas e herbicidas de que fala o livro Primavera Silenciosa de Rachel Carson. Depois, a intensificação mais recente da agricultura e o uso massivo e indiscriminado desses produtos piorou a situação. Quando se usa herbicida, isso automaticamente vai fazer com que aqueles insetos que se alimentam do néctar e do pólen fiquem com problemas de alimentação, porque muitas das ervinhas onde se usa o herbicida, que têm flor, são aproveitadas como alimento pelos insetos”, continua Quartau, que lembra que esses insetos “fazem a polinização, é uma troca de favores – a planta diz ao inseto, ‘tu fazes a minha reprodução, levas o pólen para uma outra flor, e eu dou-te néctar’”.
O declínio dos insetos compromete a polinização, o que pode tomar proporções preocupantes. “É uma das consequências do declínio dos insetos, que têm um papel muito importante na manutenção de ecossistemas de plantas com flores, e com o seu desaparecimento seis em sete sucumbiriam”. Mas as consequências não se ficariam por esses ecossistemas, porque na Natureza tudo está interligado, como lembra Quartau: “É o grande problema ou a maravilha do nosso planeta, tudo está ligado. Uma boa metáfora é o relógio mecânico. Tem muitas peças, todas com uma função, e faz lembrar o mecanismo dos ecossistemas. As peçazinhas pequeninas que lá estão são fundamentais. Se faltar um parafuso minúsculo no relógio, que ninguém vê, o relógio entra em anomalia e pode entrar em colapso. A mesma coisa acontece nos ecossistemas, com os insetos”.
A ausência de polinizadores teria efeito devastadores para a humanidade e a economia. “Já viu os gastos necessários se a polinização tivesse de ser feita manualmente?”, questiona o entomólogo, que destaca o trabalho da abelha, um dos principais polinizadores. “Todas as plantas dos pomares com fruta precisam de polinização e são as abelhas que a fazem, a par de outros insetos”, conta. Para os anais da história ficou o caso paradigmático da China e da sua Campanha das Quatro Pragas, que tão bem demonstra a importância dos polinizadores – 75% da alimentação humana, note-se, está dependente deles. Em 1958, Mao Tsé Tung lançou uma campanha com o objetivo de exterminar mosquitos, moscas, ratos e pardais – estes últimos, por se alimentarem de sementes de grão destinadas à alimentação do população. O prejuízo, contudo, acabou por ser muito maior do que o ganho: os pardais foram erradicados com sucesso, mas como resultado as populações de vários insetos, que serviam de alimento aos pardais, explodiram. Para combater as novas pragas, o uso de pesticidas intensificou-se e as abelhas acabaram por ser apanhadas na nuvem química. A ausência de polinização verificou-se nas culturas, cada vez mais débeis, o que obrigou os agricultores a fazerem, eles mesmos, a polinização manualmente. Ao mesmo tempo, milhões de chineses passavam fome: os números apontam para que, entre 1958 e 1962, 45 milhões de chineses tenham morrido de fome.
Contudo, uma eventual extinção de insetos afetaria também outros animais, levando ao seu desaparecimento. Neste capítulo, é a cadeia alimentar quem manda: ao perderem o seu alimento, as aves que comem insetos morreriam, e os seus predadores, consequentemente, também. José Alberto Quartau resume-o como “interrupção de cadeias”.
Além de um ecossistema anómalo, de sérios riscos económicos, da produção alimentar como a conhecemos ser colocada em causa e da extinção de outras espécies vegetais e animais, sem insetos o mundo ficaria repleto de lixo orgânico. Aqui, as moscas – um dos insetos mais desprezados, em especial nas sociedades ocidentais – assumem um papel fundamental: são elas que removem os lixos orgânicos. “A sua função é fazer a remoção dos lixos orgânicos. Reciclam os cadáveres de outros animais e depois a mosca é comida pelas aves”, nota José Alberto Quartau.
Neste tópico, também os escaravelhos – cujo papel é enterrar os excrementos de outros animais – são determinantes. Para o demonstrar, nada melhor do que recordar o Australian Dung Beetle Project, um projeto científico de controlo biológico que decorreu na Austrália entre 1965 e 1985. “Os europeus que foram para lá no século XIX introduziram muito o gado bovino. As vacas começaram a produzir uma quantidade brutal de excrementos, e ao contrário do que acontecia na Europa, onde os escaravelhos reciclavam os excrementos, na Austrália os escaravelhos indígenas não conseguiram fazer essa reciclagem e os australianos tiveram um problema enorme”. Consequentemente, os excrementos chamaram “milhões de moscas, que nunca mais acabavam, picavam as pessoas, picavam as vacas, as vacas pingavam sangue, ficavam doentes, apanhavam doenças e ainda por cima os excrementos ficavam ali sem serem reciclados e as vacas não comiam a erva que estava suja e emagreciam. Um problema diabólico!”, descreve José Alberto Quartau. A solução encontrada pelos investigadores do Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation (CSIRO) foi “introduzir escaravelhos de África, por exemplo, que estão habituados a excrementos muito maiores – produzidos pelos grandes herbívoros de África – e alguns escaravelhos da Europa. E foi uma introdução feliz, resolveram o problema dessa maneira”, conclui.
O biólogo E. O. Wilson mostra a importância dos insetos numa só frase. São, segundo ele, “the little things that run the world” (‘as pequenas coisas que governam o mundo’, em português). Talvez deva pensar duas vezes na próxima vez que tencionar matar um inseto.