Não passou de uma pequena fogueira, mas até uma pequena fogueira será capaz de fazer estragos, sobretudo se o que se queima são livros, como aconteceu em Koszalin, uma cidade de 100 mil habitantes no norte da Polónia. A ideia partiu de um grupo de padres pertencentes à SMS Z Nieba, uma fundação criada com o objetivo de “disseminar a palavra de Deus” e do “pensamento sagrado da Igreja Católica” – provavelmente dos três padres que, nas fotografias partilhadas no Facebook, aparecem a carregar os livros a destruir do interior de uma igreja para o seu exterior, onde seriam depois queimados numa fogueira.
E não se julgue que se tratava de exemplares dos chamados livros “proibidos” em tempos (os tempos da Inquisição) pela Igreja Católica. Não. Entre os livros a destruir, contam-se edições de Harry Potter – ironicamente queimados naquela cidade polaca dois dias depois de um exemplar de Harry Potter e a Pedra Filosofal (um exemplar que, é certo, não era um exemplar qualquer: foi o primeiro livro a ser impresso na primeira tiragem do primeiro dos sete volumes da saga de J. K. Rowling) ter sido vendido por perto de 90 mil euros num leilão em Londres.
Mas não foi Harry Potter, o jovem aprendiz de feiticeiro, o único alvo daquele grupo de padres. Entre os alvos a abater, estão também livros da saga Crepúsculo, e mais um livro do qual é possível identificar apenas o autor: Osho, o guru indiano que liderou o movimento Rajneesh, retratado no documentário Wild Wild Country, lançado em 2018 pela Netflix. E não apenas livros, mas vários objetos simbólicos foram condenados, pelo meio de um conjunto de orações, ao fogo do inferno – ou da fogueira: uma estatueta de um elefante, uma máscara tribal ou mesmo um guarda-chuva da Hello Kitty, numa “cerimónia” registada para as redes sociais contra “feitiçarias” em geral.
Enquanto pegavam fogo aos livros, com a ajuda de dois acólitos, houve um pequeno grupo de pessoas que se juntou para assistir ao ritual. Os registos do momento foram depois partilhados pela própria organização na sua página do Facebook, seguida por 23 mil pessoas, acompanhadas de citações do Antigo Testamento condenando a feitiçaria e a idolatria – e, claro, de emojis. De pequenas fogueiras.
As reações não tardaram nas caixas de comentários. Da simples chacota à indignação – e à comparação com a queima de livros pela Alemanha Nazi, durante a II Guerra Mundial.
Quando Varsóvia ardeu com os seus livros Histórias de livros atirados para fogueiras a Polónia já conhece. Durante a II Guerra Mundial, em resposta à Revolta de Varsóvia – a tentativa da resistência polaca de libertar a capital do domínio nazi, em 1944, à espera de um apoio do Exército Soviético que nunca chegou – as SS de Hitler trataram de reduzir a cinzas Varsóvia. E os seus livros.
Calcula-se hoje que entre 70% e 80% das bibliotecas da capital polaca tenham sido incendiadas nesses dias, incluindo a Zaluski, a mais antiga biblioteca pública da Polónia, fundada em 1747, e uma das mais antigas e importantes bibliotecas em toda a Europa, num incêndio a que, de 400 mil livros, mapas e manuscritos apenas 30 mil sobreviveram. A Biblioteca Nacional polaca foi outro dos alvos, bem como vários museus e palácios, aos quais foi pegado fogo indiscriminadamente. Os 350 mil livros que, na Biblioteca Central Militar, contavam a história da Polónia, desapareceram com ela. Estima-se que 16 milhões de livros tenham sido reduzidos a cinzas como resultado desta operação.
Agora os tempos são outros. Na Polónia pós-comunista, um país onde, de acordo com as estatísticas, um terço dos habitantes vai à missa todos os domingos, em questões como os direitos LGBT ou o aborto, a Igreja Católica – recentemente posta em causa pelo rebentar na esfera pública de um escândalo de pedofilia que envolveu centenas de padres – tem-se posicionado na linha da frente na guerra que tem oposto um Governo liderado por um populismo conservador e nacionalista a uma oposição em luta por mais liberdade nos costumes.
Entre o comunismo e o catolicismo Num artigo publicado em 1998, menos de dez anos depois da queda do comunismo, na revista Europe-Asia Studies intitulado The Roman Catholic Church and Democracy in Poland, Mirella W. Eberts explica o peso do catolicismo na dinâmica política e socioeconómica no país onde em 1955 se firmou o Pacto de Varsóvia, observando a forma como a “posição de poder e privilégio” de que goza a Igreja Católica tem afetado o processo de democratização da Polónia.
“No passado mais recente, para a maioria dos polacos, a Igreja foi um bastião de liberdade e uma fonte de proteção e de oposição às autoridades comunistas”, afirma a investigadora, recordando a forma como “os ativistas envolvidos na oposição ao regime, crentes como não crentes, foram ajudados pelo clero católico e acolhidos em igrejas”, por todo o país. “A Igreja, em contraste com o Partido dos Trabalhadores Polacos (PPR), gozou de imenso apoio e respeito. Na verdade, apesar dos obstáculos encontrados e das várias formas de repressão sob o regime comunista, sobretudo na fase estalinista, a Igreja cresceu em força e em influência. Emergiu do período comunista não apenas como a mais alta autoridade moral, mas também, em grande medida ao assegurar importantes concessões das autoridades comunistas, como a mais poderosa instituição no país.”
Bizarro quanto baste, o que aconteceu naquela cidade do norte da Polónia há dias não foi um episódio isolado, ou pelo menos inédito para Harry Potter, no passado já visado por fundamentalistas religiosos perseguindo a crença de que J. K. Rowling se deixou levar por espíritos demoníacos na criação da saga juvenil. Também na Rússia, em 2016, um filme de animação apoiado por várias agências ligadas ao Governo, apresentava-o como personagem alinhada com uma conspiração da NATO para fazer lavagem cerebral às crianças russas.