Seis agentes aproximam-se. Veem um homem, negro, sentado num carro. Falam entre si. Ao colo, o homem tem uma arma de fogo sem carregador e, ao coçar o ombro, os agentes disparam vários tiros. Teve morte imediata. Estava a dormir e não representava qualquer ameaça, nem para os agentes nem para terceiros. Tinha 20 anos, chamava-se Willie McCoy e era um rapper bastante conhecido. O seu corpo foi perfurado por 25 balas de 9mm. Pescoço, cabeça, braços, peito, orelhas. “Foi baleado até ficar aos pedaços”, disse o advogado da família do rapper, John Burris, com a família a acusar os agentes de o terem “executado”.
Tudo aconteceu na cidade norte-americana de Vallejo, nas proximidades de São Francisco, na tarde de 9 de fevereiro, mas só agora se sabe o que verdadeiramente aconteceu. A polícia recusou-se a dar informações sobre as investigações, acabando por divulgar apenas o nome dos agentes envolvidos. Só no final desta semana é que os vídeos gravados pelas câmaras embutidas nos uniformes dos polícias foram divulgados. Não tentaram acordar McCoy nem falar com ele assim que viram uma pistola ao colo, apontando-lhe à cabeça as suas armas de serviço. “Vou tirá-lo de lá e arrastá-lo”, disse um agente. “Ele só tem uma bala [na câmara da arma] se quiser disparar”, disse outro agente. “Se ele lhe tentar pegar, já sabem o que fazer”, acrescentou um terceiro. McCoy mexeu-se para coçar o ombro e vários tiros foram disparados.
Nas versões dos agentes, o rapper norte-americano “tentou apanhar a arma que tinha no colo” e “temeram pelas suas vidas”, mas o vídeo mostra uma versão completamente diferente. McCoy não representava uma ameaça e os agentes dispararam à queima roupa sem tentarem uma outra abordagem – foram chamados ao local por um homem estar inanimado num carro. Nos cinco minutos anteriores aos disparos, os agentes falaram entre si com vozes calmas. E, agora, a polícia de Vallejo está sob fortes críticas, com os seis agentes suspensos até à conclusão da investigação – medida de protocolo nestes casos.
Não é a primeira vez que dois dos agentes envolvidos na morte de McCoy se veem a braços com a justiça. Ryan McMahon foi responsável pela morte de um homem desarmado e enfrentava um processo cível nos tribunais norte-americanos por uso excessivo de força – o que não o impede de exercer a profissão, ao contrário das investigações e processos disciplinares. O segundo, Mark Thompson, também foi acusado de uso excessivo de força, acabando por chegar a acordo com a vítima – desfecho bastante comum neste género de processos.
“Há milhares de vídeos no YouTube que mostram a má conduta da polícia, seja a bater em cidadãos ou a matá-los”, disse Marc McCoy, irmão mais velho de Willie, ao Guardian. “São ignorados. A polícia de Vallejo viu o vídeo e acha que não há nada de errado ou que os agentes fizeram alguma coisa de errado”, explicou.
Há muito que a comunidade afro-americana se sente perseguida e alvo de racismo pelas forças de segurança norte-americanas – a eleição de Barack Obama para a Casa Branca não atenuou esses sentimentos. Bem pelo contrário, têm crescido sem parar desde que agentes balearam mortalmente Michael Brown, de 18 anos, a 9 de agosto de 2014, em Fergunson, Missouri. Brown, que estava desarmado, foi baleado 18 vezes pelo agente Darren Wilson. Foi a gota de água num copo há muito a transbordar e protestos irromperam na cidade. Carros e lojas destruídos, pilhagens, confrontos com as autoridades. Wilson acabou por ser ilibado de qualquer crime e a raiva na comunidade cresceu ainda mais. Dontre Hamilton, Eric Garner, John Crawford III, Ezell Ford, Laquan McDonald, Akai Gurley, Tamir Rice, Antonio Martin, e Jerame Reid – são alguns dos nomes de afro-americanos mortos em circunstâncias semelhantes às de Brown só em 2014.
Com a morte de Brown em pano de fundo, um grupo de jovens começou a gritar num centro comercial “Black Lives Matter” (as vidas negras importam) em Fergunson e a partir daí a palavra de ordem pegou. Pegou tanto que nasceu um movimento social com esse nome. Aos poucos, criou raízes nas comunidades afro-americanas e acabou por ressuscitar o movimento pelos direitos civis dos afro-americanos da década de 60. Hoje, esse movimento está um pouco por todo o país.
Ganha força a cada novo vídeo nas redes sociais de agentes a usarem força excessiva ou a matarem afro-americanos desarmados – os vídeos do mata-leão que agentes fizeram a Eric Garner, afro-americano de 43 anos, em Nova Iorque, em 2014, ou a morte de Fredie Gray, afro-americano de 25 anos, quando estava sob custódia das autoridades – tornaram-se virais. O nome do movimento transformou-se numa hashtag mundialmente conhecida e os seus ativistas são sobretudo millennials com grande experiência nas redes sociais. E agora é um símbolo de luta por justiça, independentemente da etnia, religião, género ou orientação sexual. É um movimento alargado de quem não se sente representado e incluído na sociedade norte-americana.
O movimento social extravasou a questão da violência policial, abraçando também desigualdades estruturais na sociedade norte-americana: saúde, educação, emprego, habitação e voto – neste último, apenas um em cada 13 afro-americanos pode votar por causa de uma lei que proíbe os cidadãos condenados de votarem.
Desde sempre que os afro-americanos ultrapassam em muito os caucasianos nas prisões norte-americanas, havendo várias razões apontadas para o fenómeno: por viverem em piores condições, na maioria das vezes em bairros sociais na periferia das grandes cidades. O acesso à educação de qualidade também é muito menor e o de à saúde ainda menos – o Medicare de Barack Obama veio melhorar a situação de milhões de norte-americanos, mas não o suficiente. Em suma, as oportunidades de vida são bem menores em comparação com os caucasianos, por os trabalhos a que têm acesso serem de baixos salários e com poucas qualificações. Acabam muitas vezes por procurar formas de rendimento alternativas, muitas vezes ilegais, como o tráfico de droga e armas, acabando detidos.
Sabendo desta discrepância, os afro-americanos decidiram, tal como no passado, voltar a fazer ouvir as suas vozes no espaço público. Sem medos. Saíram às ruas em protestos, foram às universidades, onde organizaram debates, e começaram a desenvolver trabalho nas comunidades, aproximando-as. Nas redes sociais, a mobilização e a denúncia de situações de injustiça às mãos das autoridades é constante. Um movimento cujo objetivo é fazer com que os afro-americanos tenham, na prática, os mesmos direitos e que sejam respeitados sem que a cor da pele seja um obstáculo ou base para preconceitos raciais.
Não é apenas um movimento de ação e de protesto, é também um de memória das vítimas. Não deixa que os seus nomes caiam no esquecimento ou que sejam desvalorizados como casos particulares. E assim será com Willi McCoy.