“E também gostei muito do Jardim da Estrela/ com os velhos sentados nos bancos ao sol/ e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho/ e a adormecê-la/ e as meninas a correrem atrás das pombas/ e os meninos a jogarem ao futebol”, escreveu um dia António Gedeão, que se chamava na realidade Rómulo de Carvalho e era professor de Físico-Químicas, como se dizia esbarrando na irritante cacofonia do “si-co-qui”.
Orgulhosamente centenário nesse início de abril de 1952. O Jardim da Estrela, que também foi Passeio da Estrela. Surgira assim mesmo, passeio público, fazendo concorrência à Alameda de São Pedro de Alcântara, aquela que se dizia estar pejada de estátuas cegas que não pudessem ver os delíquios apaixonados dos casais de namorados. Campo d’Ourique crescia, a Basílica do Coração de Jesus, à Estrela, cumprira os seus 60 anos, o conde de Tomar, António Bernardo Costa Cabral, presidente do Ministério e ministro do Reino, puxou pelas meninges e, com a ajuda do seu grande amigo, o lente da Escola Médica, dr. Laureano da Cruz Gomes, alcandorado a presidente da Câmara Municipal de Lisboa, deitou mãos à obra. Ou melhor, que há que ser correto nestas coisas da História: mandou deitar mãos à obra. E muitas.
A Rainha Dona Maria II esteve, naturalmente, de acordo. Junto ao Convento da Estrelinha, que se transformaria no Hospital Militar, uns terrenos pejados de casebres e uns torrões de semeadura, pertencentes aos beneditinos de Nossa Senhora da Estrela, foram à praça. O Estado comprou.
Entra em cena o dono de um palácio imponente, no Chiado. Vocês conhecem–no bem: o mesmo que viria a albergar os Armazéns do Chiado. Talvez não conheçam tão bem o seu proprietário da altura, o barão de Barcelinhos, Manuel José de Oliveira, comerciante abastado. A tal ponto abastado que lhe chamavam o Manel dos Contos. De réis, como está bem de ver. Bateram-lhe à porta em 1842. E ouviram da sua boca: “Que rica ideia! Contem aqui com o Contos. Entro já com cinco. Belo!”
A coisa fazia-se. Joaquim Manuel Monteiro, que enriquecera no Brasil, também escutou pancadas à porta. Foi igualmente um mãos-largas: 4757 réis. Mas teve direito a recompensa: D. Luís fê-lo 1.o visconde e conde da Estrela. Bem a propósito.
Acabaria por levar o seu tempo. Veio a Revolução de Setembro, o cabralismo, a Maria da Fonte, o marechal Saldanha e o diabo a quatro, esfumaram-se os anos e o dinheiro. Quando as obras recomeçaram, em 1850, os contos do Manel dos Contos não passavam de memórias de uma antiga opulência. A coroa abriu os cordões à bolsa, o arquiteto Pedro Pézarat teve, só para erguer o pavilhão direito, a quase oito contos de réis, levantou–se o gradeamento de ferro forjado, abriram-se três portões ao público e, até ao ano da graça de 1874, já se tinha despendido na Estrela a graça de mais de 80 contos.
Tornou-se local feliz de crianças e amas, à sombra de quase 900 árvores, teve uma montanha-russa, grutas, cascatas, coreto, estufas e a famosa jaula do leão: o Leão da Estrela. Vieram as estátuas e os estudantes do liceu. Abriu-se mais um portão. E passaram-se, pelo caminho, cento e sessenta e sete anos, por extenso. “A porta do Jardim, no inverno, ao entardecer/ à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas/ gostei muito de ver/ erguer-se a névoa azul do fumo das castanhas”. E ainda há pombas e meninas. E meninos a jogarem ao futebol.