O mundo mudou, não foi um espasmo para justificar a necessidade de tomar medidas negativas nacionais, também em função da conjuntura internacional. Há, de facto, mudanças que ocorreram e ocorrem, em boa parte resultantes das dinâmicas sociais, económicas e culturais de um tempo em que o digital se sobrepõe em muitos momentos à dimensão real das nossas vidas e do pulsar das comunidades.
O mundo mudou significa que muito do que se fazia, por imperativo ético, escrutínio ou grau de exigência deste novo tempo , não pode ou não deve continuar a ser feito. E, no entanto, os protagonistas políticos continuam a insistir em comportamentos e iniciativas não explicadas, não sindicadas e com débeis nexos de sintonia com as pessoas e as comunidades.
Este tempo digital, em que a informação coabita com a intoxicação, tem de ser um tempo de pedagogia, de explicação do sentido do exercício político e das suas opções e de geração de oportunidades de avaliação dos resultados em função dos enunciados iniciais. Tivesse sido assim com as medidas e as opções políticas dos últimos quatro anos e nem as expetativas criadas em vários setores da sociedade se tinham avolumado, nem os apoiantes da solução governativa tinham a ousadia de assumir uma responsabilidade seletiva das opções e dos resultados da governação resultante da maioria parlamentar gerada em 2015. O problema é que, em vez de percorrerem o caminho da sintonia com o tempo e com as pessoas, os protagonistas políticos, à esquerda e à direita, insistem em assumir muitas opções que não são inteligíveis, amiúde com enormes divergências entre as proclamações e a realidade concretizada.
A política, na sua essência, é um exercício cívico nobre e que permite um razoável nível de realização de valores e de princípios, de acordo com o interesse comum. O problema é que o sistema gerou ao longo dos anos um conjunto de distorções que foram sendo toleradas, mas que o deixaram de ser, podendo a tolerância variar em função dos rendimentos disponíveis.
Já era tempo de perceberem que há ou tem de haver linhas vermelhas de separação entre a política e os negócios, entre o partido e o aparelho do Estado, entre as escolhas de confiança política e a insistência num quadro de transposição de experiências da Câmara Municipal de Lisboa para o Governo.
Já era tempo de perceberem que não vale a pena ensaiar grandes proclamações de rigor, transparência e escrutínio se, depois, o resultado final, quase pela calada, é a consagração de sistemas que possibilitam a persistência de nebulosas fronteiras ou de opacidades tradicionais.
É o que o partido invisível ou bloco central dos interesses na Assembleia da República acabou de se consagrar. Depois das proclamações, os deputados que integram sociedades de advogados com relações com o Estado vão poder continuar o seu livre exercício de funções em banda larga e banda estreita. Resta saber a qual corresponde a da defesa do interesse geral da República. O curioso é que a cortina gerada pela polémica das nomeações em modo de agregado criou uma cortina de fumo sobre uma questão grave que não dignifica nem a política, nem os protagonistas políticos do momento.
Há gente que ainda não percebeu que tem de mudar o chip do exercício de funções públicas, vivem enleados em práticas de décadas anteriores em que demasiado era permitido, tolerado e feito, sem qualquer penalização pública, política ou judicial.
O tempo atual é mais exigente, com maior escrutínio, com um reforçado sentido de interação com as pessoas e com novas exigências participativas, além do conforto da representatividade dos mandatos.
Ninguém deve estar na política contrariado ou em permanente reconfiguração do funcionamento democrático em função de dimensões pessoais ou de grupos de interesse.
Não perceber esta realidade é continuar a alimentar espaço para a emergência de fenómenos populistas, crescentes alheamentos da população em relação à política e a geração de espaços de oportunidade para um mediatismo que, com excessiva frequência, é tão desqualificado como o exercício da liberdade de expressão nas redes sociais ou os comentários dos média online.
Quarenta e cinco anos de democracia deveriam trazer uma maturidade que não está espelhada em muita vivência da nossa vida política. É tempo de acertar o passo por impulso próprio, ou serão os eleitores e os populistas a acertar os passos a muitos dos protagonistas do presente. É que o tempo dos fins que justificavam tudo já deu o que tinha a dar, e no exercício de funções, na sustentabilidade das opções e no escrutínio dos resultados têm de ser mais exigentes.
Tudo o que alguns parlamentares não foram. É de lamentar.
NOTAS FINAIS
PASSO Passo a passo, persiste uma rançosa existência de pseudojusticialistas que aproveitam os espaços de oportunidade para dar expressão a frustrações, inconsistências e comprometimentos. É assim no futebol e em algumas tentativas de aproveitamento do mundo do futebol para exercitar fins de carreira política em instituições parlamentares europeias. Como se não houvesse telhados de vidro.
COMPASSO Os resultados da execução orçamental, sendo positivos para o país, sublinham um conjunto de opções políticas, das cativações às opções setoriais, que não são sustentáveis no tempo.
TROPEÇÃO O Reino Unido enleou-se e enleou a União Europeia numa novela sem norte e sem senso de sustentabilidade. O desnorte inconsequente é tão mau para as partes como para o todo.
Escreve à segunda-feira