Identidade de género. Como lidam as marcas com a diversidade?

Identidade de género. Como lidam as marcas com a diversidade?


Se a sociedade demora um pouco mais a aceitar a diversidade, as marcas têm apostado no neutro. Exemplo disso são a H&M e a Zippy, que criaram recentemente coleções que rompem as fronteiras do género. As reações vão do aplauso à crítica.


As marcas evoluem ao sabor da sociedade e das suas necessidades. E as marcas de roupa, em específico, não são exceção. Este ano, por cá, duas já deram cartas no capítulo da aceitação da diversidade.

A primeira foi a H&M, que logo em janeiro divulgou ao mundo uma coleção de roupa, sapatos e acessórios unissexo em parceria com a marca Eytys, também disponível nas lojas portuguesas. O i contactou a H&M para perceber a motivação por trás da criação da coleção. Em comunicado, a marca começa por esclarecer que “a abordagem de design da Eytys e caráter global estão enraizados na era digital, mas também na liberdade de restrições baseadas no género ou na idade”, explicando que com a coleção “tudo pode ser facilmente misturado e conjugado para qualquer estado de espírito e permite realmente mostrar autoconfiança – em nós próprios e no nosso estilo”.

Já este mês, foi a vez de a Zippy entrar no jogo: a marca portuguesa de vestuário para bebés, crianças e pré-adolescentes lançou uma coleção à qual deu o nome “Happy”. A coleção, feita de cores vivas, foi divulgada na página de Facebook da marca e descrita como ungendered (sem género, em português). “Nesta cápsula, as cores assumem total protagonismo. Cada cor procura representar uma personalidade, e cada peça a capacidade de celebrar e agregar cada uma delas, reforçando o conceito de togetherness [sentimento de unidade, em português]”, lê-se no texto que acompanha as 11 fotografias da coleção, onde se veem meninas e meninos usando as mesmas roupas e sapatos.

A publicação, que desde o dia três de março soma já 1,3 mil reações, 427 comentários e 192 partilhas, tem gerado posições extremadas, tanto de satisfação – há pessoas a felicitar a marca pela ideia, por exemplo – como de recusa – houve quem deixasse comentários como “Zippy nunca mais” e afirmasse que a coleção era LGBT –, o que levou a marca a reagir. “A coleção Happy não tem qualquer associação a ideologias ou movimentos. Esta é uma coleção cápsula com peças unissexo, que podem ser usadas tanto por meninos como por meninas. A Happy materializa o espírito prático e funcional da Zippy. Com esta linha, queremos facilitar os pais na hora de vestir as suas crianças, dando-lhe opções versáteis e que podem ser passadas de irmãos para irmãs, de primas para primos, e vice-versa”, justificou a marca.

O i contactou a Zippy para saber mais sobre a coleção e o seu porquê, mas as respostas não chegaram até ao fecho desta edição. A especialista em marcas Ana Paula Cruz, contudo, ajuda a compreender o posicionamento. “A publicidade vive sempre um bocadinho atrás de outras áreas da comunicação, porque só integra nos seus conteúdos coisas que outras áreas da comunicação já integraram há muito tempo, nomeadamente a informação e o entretenimento – através de telenovelas, filmes ou séries internacionais. Só depois de ter sido feito um percurso de aceitação da sociedade de uma forma geral é que a publicidade assume com alguma naturalidade a introdução de um novo estereótipo. É bastante conservadora, não parece, mas é; é muito inovadora na maneira como concretiza a comunicação, mas é muito conservadora naquilo que diz e não assume riscos”, começa por dizer a professora do IPAM – Instituto Português de Administração de Marketing.

Já o especialista Carlos Coelho considera que cada vez mais a sociedade coloca um desafio “às marcas, que é a aceitação de uma nova natureza. Está em causa o respeito pela natureza das pessoas e pela diferença. As marcas tentam adaptar-se àquilo que é a demanda e acabam por ser influenciadas por este tipo de preocupações”.

Relativamente à H&M, cuja coleção tem uma seleção para criança mas é fundamentalmente para adultos, Ana Paula Cruz defende que “esta entrada da comunicação numa abordagem unissexo ou neutra era uma inevitabilidade pelo percurso que já foi feito entretanto. É que, se ao nível do produto, as pessoas aderem ou não às propostas porque vão usar ou não – e o mercado responde de uma forma clara, comprando ou não comprando –, na comunicação tem mais que ver com o hábito de as pessoas verem ou não aqueles conteúdos serem ditos”, diz a especialista. “Aqui, como já fizemos todo um percurso em que, ao nível da informação, esta ideia já foi sendo introduzida, e ao nível do entretenimento mais ainda, neste momento, a publicidade já não está verdadeiramente a enfrentar um grande desafio, é apenas o assumir de uma atitude que a sociedade já vem ajustando e interiorizando com as telenovelas, por exemplo”.

De acordo com Ana Paula Cruz, aliás, “a moda unissexo já não é uma coisa assim tão nova quanto isso. O que está a acontecer é que, neste momento, as marcas já não têm propriamente problemas em dizê-lo, já têm esse à-vontade porque o percurso já tem vindo a ser feito. Quando uma própria Alemanha define que, para além dos géneros masculino e feminino, existe um terceiro, neutro, está dado o passo para se assumirem de uma maneira definitiva as alternativas”.

No que às crianças diz respeito, o panorama é diferente. De acordo com Ana Paula Cruz, se o tópico já foi introduzido ao nível das adultos, quer por órgãos de comunicação social, quer no entretenimento, o mesmo não pode dizer-se quanto às crianças. A especialista justifica, assim, a reação dos pais relativamente à nova coleção sem género da Zippy. “Como isso nunca foi feito no entretenimento e pouco na informação, daí essa reação. No entanto, não me parece que a marca em si esteja a fazer alguma coisa que não esteja já a acontecer nos desenhos animados e no gaming – há heróis que nós não sabemos muito bem se são homens ou mulheres, por exemplo. Isto já existe; provavelmente, os pais não estão é tão alerta ou sujeitos a isso para terem consciência do fenómeno. Mas as crianças estão”, garante.

Por sua vez, Carlos Coelho assinala que as grandes causas “são o principal espaço de diferenciação que existe nas marcas” e, sendo as pessoas não binárias e o género fluido “um debate na sociedade”, as marcas “acabam por associar-se”. Do ponto de vista do marketing e da comunicação, a tomada de posição das marcas quanto a determinadas questões é mesmo fundamental, defende o especialista: “Acho que as marcas que não tomarem posições não vão existir no futuro. As marcas têm de tomar posições, nós vamos querer consumir marcas que saibamos o que defendem”.

E poderá a Zippy sair prejudicada nas vendas por causa desta proposta? Ana Paula Cruz duvida: “Não acredito que tenha um impacto significativo, até porque em Portugal não se sente muita intolerância na sociedade e a marca tem outras ofertas e vantagens competitivas. Aos pais também é dada pura e simplesmente a escolha de não comprarem”, sublinha a especialista. “Tenho quase a certeza de que, se forem as crianças a escolher a roupa, podem facilmente escolher um produto que é unissexo, por causa da questão do heróis. O preconceito é dos pais”, acredita Ana Paula Cruz.

Carlos Coelho também rejeita que as vendas possam vir a cair, apesar de considerar a questão delicada. “Esta questão da Zippy em específico pode ser delicada. Embora a Sonae não seja uma empresa medrosa, há sempre um receio de que uma tomada de posição possa ferir a base mais conservadora dos clientes. Seria mais seguro que a marca se afirmasse como respeitadora da diferença, e não como equalizadora dos meninos e das meninas”, considera. Contudo, “se a Zippy assumir o respeito pelas diferenças, só terá a ganhar”, acredita.