Chega atrasado por causa de um imprevisto, mas quem conhece um pouco o seu feitio sabe que é melhor não levantar ondas por causa disso. Ljubimir tem fama de ferver em pouca água. Recebe-nos no seu novo restaurante, o recém-aberto 100 Maneiras, que fica literalmente a dois passos do anterior. Neste espaço sofisticado serve aos clientes uma autêntica extravagância culinária que conta uma história: a da sua vida. Entre as iguarias que vão para a mesa encontram-se o pão feito pela sua mãe, Rosa, a pasteta que vinha nos pacotes da Cruz Vermelha que comeu durante um ano ou uma cabeça de vaca que é uma memória da relação atribulada com o pai. Mas há também produtos do mais requintado: caviar russo, foie gras ou um chá de presunto Joselito, considerado o melhor do mundo.
Conhecido tanto pela sua carreira nos tachos como pelos programas de televisão (depois de Pesadelo na Cozinha, na TVI, faz agora História da Gastronomia Portuguesa, na RTP), aos 40 anos Ljubomir atingiu um patamar de sucesso invejável. Mas também já passou por muito. Nascido em Sarajevo (atual Bósnia-Herzegovina) passou pela guerra, foi refugiado, começou a trabalhar como padeiro aos 14 anos, passou por restaurantes com cozinhas cheias de ratos e, mais recentemente, quase morreu num acidente de mota. Nesta entrevista sem papas na língua fala sobre tudo isso, mas também sobre os melhores momentos que viveu na cozinha, a educação dos filhos e clientes insuportáveis.
Quanto tempo demorou a abrir este restaurante? Três anos?
Esteve em obras três anos, para abrir estava há um ano e meio. Isto era a antiga Adega do Teixeira, um restaurante histórico português – cantava-se fado aqui dentro, etc. Como o primeiro 100 Maneiras está aqui na porta ao lado, eu vinha aqui chateá-los todos os dias. ‘Preciso de ficar com o espaço, preciso de ficar com o espaço’. Eles estavam para se reformar, então fizemos o trespasse.
O que demorou mais, as burocracias?
Não. A Câmara de Lisboa trabalhou bem nisto, não me posso queixar – só gosto de falar mal quando as coisas correm mal, e não foi o caso. O problema foi que no final das contas a obra atrasou-se, houve problemas…
Atrasam-se sempre, não é?
Sim, mas nunca estava à espera que demorassem o dobro do tempo. Não está na minha cultura, sou do Leste, as coisas são ordenadas e têm de ser feitas. Só para a instalação da eletricidade demorou um ano. Todo o Bairro Alto tinha 38 kilowatts e eu precisava de 140, portanto tive de instalar eletricidade para todo o Bairro Alto.
Por causa dos fornos?
Fornos e fogões, instalações elétricas, placas de indução, etc. Para o tipo de cozinha que pratico precisava de ter os três tipos de maquinarias, a indução para uma fervura rápida, o gás e a parte de chapas elétricas, para cozeduras fixas sem oscilações de temperatura.
Passada essa parte das obras, qual é o passo seguinte? Comprar as panelas?
Já tínhamos tudo isso comprado antes. Como o restaurante estava atrasado, fiz um acordo com a Le Creuset, que para mim são os melhores tachos do mundo…
E os mais caros…
Não são os mais caros mas devem andar por aí. Fizemos uma pesquisa a nível de tachos, panelas e frigideirinhas e tudo o que eles tinham para conseguir pagar aos poucos antes de abrir o restaurante – é uma despesa grande. Sempre que havia dinheiro na empresa, comprava umas coisas para preparar a abertura. E mal acabaram as obras começámos a alinhar o menu. Todos os dias estivemos aqui a fazer testes.
A provar comida?
Testes, cozinhar, provar. Geralmente eu sou daquelas pessoas ‘que se foda’, faço tudo sem medos. Mas aqui foi um grande investimento e tive um pouco o receio de arriscar demasiado. Mas tinha de arriscar na mesma. Então senti preocupação de não cometer nenhum tipo de erro. Fiz esses testes com muita concentração, para irmos ao limite e sabermos exatamente o que queremos, qual é o caminho onde queremos chegar.
Qual é a parte mais gira e qual é a parte mais chata de montar um restaurante?
A parte mais chata é a espera. Dar dois passos para a frente e três para trás. Quando acabaram as obras entre paredes, chegou o fogão de Itália. Tinham tirado mal as medidas e dois centímetros numa parede foram o suficiente para o fogão não entrar. Rebentaram com a parede toda novamente. Fiquei possesso. A parte mais bonita é esta: provar coisas, testar coisas, avançar, sonhar, criar.
Li nalgum sítio que nunca se devia ir a um restaurante no início porque as coisas ainda não estão bem oleadas.
No nosso caso não tínhamos essa hipótese. Já não somos amadores, estamos num campeonato diferente. No dia em que abrimos estava tudo 100%, não há cá merdas, nem eu sequer me permitiria cometer o erro com o cliente. A pessoa vem para pagar, tem de estar tudo impecável. Por isso é que durante três semanas ninguém ia para casa.
Disse que nada pode falhar. Mas às vezes não há como evitar o erro.
Tudo isto demorou anos de suor e esforço, não há nada para falhar.
Nem sob pressão?
Eu trabalho sob pressão todos os dias. Tenho 29 anos na cozinha, é uma vida. Obviamente pode acontecer mas não me perdoo nem perdoo a ninguém. Tem de estar tudo alinhado a 100%, é por isso que estamos cá. Tudo é escolhido ao pormenor, tu vais à casa de banho e eu sei que música é que vai tocar lá em baixo enquanto estás sentado na sanita. Quando voltas, o guardanapo só pode estar dobrado de um lado, quatro centímetros ao lado do teu prato, não pode ser cinco. Os talheres todos têm de ser sobrepostos em cima de uma pedra que é cortada por mim, fui eu que a fui buscar à Costa Vicentina. Estes individuais são feitos por mim. São coisas pensadas, bem feitas, não há falha, não pode haver. Se houver parto a cabeça a alguém [risos]. No bom sentido.
Este é um restaurante caro. Tal como o primeiro que abriu em Cascais. Também trabalhou em restaurantes mais modestos?
Eu? Se eu trabalhei como empregado ou se abri?
Como empregado.
Eu nasci pobre. Fui refugiado. Não tinha pão para comer. Comecei a trabalhar a lavar loiça. Trabalhei em restaurantes imundos com ratos na cozinha. Em Portugal trabalhei em tascas típicas. A minha vida não é luxo, nunca o tive. Este restaurante é caro, se se considera caro -acho 110 euros muito barato para aquilo que estou a servir: 40 gramas de foie gras de Landes, 20 gramas de caviar, salmonetes, presuntos Joselito. A maior parte dos clientes provavelmente nunca teve contacto com produtos de tão alta qualidade.
A única vez que fui a um restaurante seu, o Ljubomir estava sentado ao balcão a abrir garrafas de champanhe.
Era uma festa?
Não sei. Estava com um casal, julgo, e abriu pelo menos duas ou três garrafas.
Provas de vinhos?
É possível. A vida de um chefe também tem momentos de descontração?
Então não tem? Eu curto a vida p’ra caraças. Dificuldades já passei muitas, agora gosto de tirar o meu tempo, de descontrair. Gosto de me sentar a tomar um copo, claro que sim. A vida na cozinha é uma vida hardcore. Quem trabalha na cozinha do modo como nós trabalhamos ou é maluco ou é drogado ou é chanfrado dos cornos. Não tem outra hipótese. Esta vida é dura.
E o Ljubomir considera-se o quê?
Avariado dos cornos. Completamente. Se fosse drogado não estava aqui. Sou avariado dos cornos, como todos os grandes cozinheiros. Nenhum bate certo daquela pipoca. É preciso estares poucas horas com a família, é preciso teres as veias das pernas todas rebentadas – já fui operado para aí umas quatro vezes. Às vezes deito-me às quatro da manhã e tenho de acordar às sete para ver os filhos aquela meia hora e levá-los à escola. É preciso ser um bocadinho avariado dos cornos para seguir esta vida.
E compensa?
Compensas quando tens tempo livre. Quando conquistas a vida e consegues obter algum sucesso tens tempo. Daqui a quatro, cinco, seis meses, quando o restaurante estiver impecável, vou pegar nos filhos e vou quinze dias para fora. Agora ainda tenho de me preocupar, mas quando as coisas estiverem nos carris tenho uma vida normal, dois dias de folga, etc. Abri este restaurante para estar na cozinha mais tempo, para estar mais focado. Estou farto de correr de um lado para o outro, estou farto de televisão, quero estar sossegado no meu cantinho. Onde eu nasci, onde criei a minha vida foi com tachos e panelas atrás de um fogão. E estou a fazer exatamente isso.
Chega um momento em que o chefe é mais um empresário que tem de gerir e controlar contas do que alguém que está na cozinha?
Há chefes e chefes. Eu sou o filho da puta que anda todo queimado. Estou na cozinha. Há outros chefes que não – são gestores. Isso é a opção de trabalho de cada um e não critico ninguém. Não me faltam oportunidades e sugar babies para abrirmos 50 restaurantes e usar o meu nome.
Tipo franchise?
Tens aí chefes que têm 30 e 40 restaurantes por Lisboa. Não é a minha cena. Sou de Leste mas não sou puta. Se fosse puta de Leste era outra coisa, cobrava muito para me irem ao cu, para ter um sugar baby por trás de mim… Mas se fizer isso estou a mentir ao cliente, isso não é cozinheiro. Cozinheiro é o gajo que está na cozinha, está a queimar as mãos, está atrás das panelas, está a fazer menus. São vários tipos de profissões e cada um enquadra-se no seu sucesso.
No site do 100 Maneiras diz que o Bistro tem influências francesas porque foi o país onde aprendeu a comer…
A cozinhar! Aprendi a comer na mama da minha mãe, acho eu. Em França aprendi a cozinhar. A cozinha francesa é a cozinha que eu mais respeito, aquela clássica. As cozinhas modernas não me dizem nada. Comer folhas? Bé-é-é! É para ser uma vaca daqui a pouco. França para mim é a referência de bem comer – e não é só para mim, é para qualquer pessoa no mundo. A gastronomia portuguesa também é das melhores do mundo, sem dúvida nenhuma. Mas todos nós fomos influenciados pelos franceses.
Embora haja quem diga que foi uma rainha de origem italiana, Catarina de Médicis, que levou os seus cozinheiros para a corte francesa e fundou a grande tradição da cozinha francesa.
Eu acho que isso é uma grande tanga, mas pronto.
Um chefe come de maneira diferente de qualquer outra pessoa?
Qualquer pessoa que desempenhe esta profissão sabe identificar coisas que os outros não sabem – nem precisam de saber. O palato é uma coisa que se educa. Comer serve para nos divertirmos, se não é uma seca.
Conheço pessoas que comem porque têm de comer. Se pudessem tomavam um comprimido e ficavam despachados!
Também conheço algumas pessoas assim. Eu tenho um estilo de vida diferente. Vivo a vida pelo prazer de comer. Ando à procura desse prazer no meu dia-a-dia. Se vou planear jantar em casa com os meus filhos e com a minha mulher, planeio comer muito bem.
Em casa também comem bem?
Claro que comemos bem. A minha vida é virada para esse lado.
Pensava que havia uma distinção entre o trabalho e a vida familiar.
Escolhi esta profissão porque passei muita fome na vida. Durante um ano comi pacotes da Cruz Vermelha. Não sabia o que era uma carcaça de pão.
O que tinham esses pacotes?
Tinham comida de merda, comida de tropa. Um pacote de ração de cão autêntica, que tu metes dentro de água a ferver, tinhas uma bolacha de água e sal, tinhas um patê, que eles chamavam uma pasteta, um corte daquelas carnes que passaram de validade há seis anos. Isto durante um ano. Claro que quero comer bem! Há quem tenha prazer nas putas, eu tenho prazer em comer. Nunca na minha vida pagava a uma mulher. Mas pagava mil euros por um prato.
E já pagou?
Já paguei muito dinheiro para comer. Estamos a falar do meu objetivo na vida. Isso é que me excita, isso é que me dá prazer. Já passei muito mal e prometi a mim próprio nunca mais comer mal na vida. Tenho lutado para isso e continuo a lutar.
Qual foi a melhor refeição?
Tenho muitas. De restaurantes em Portugal sem dúvida Hans Neuner no restaurante Ocean, em Armação de Pera. Um estrangeiro que só usa produto português. Granda refeição de experiência, mesmo. E também já comi em tascas maravilhosas em Portugal. Tenho muito respeito pela gastronomia portuguesa. Vocês passaram muita fome. Salazar fodeu-os todos. Há terras que se chamam Pouca Farinha porque a farinha era toda retirada e mandada para o estrangeiro. As sardinhas e todos os enlatados que faziam para as tropas do resto do mundo vocês nunca os comeram. Passou-se tanta fome, tanta fome, que conseguiram criar uma cozinha do engenho. Vocês são engenhocas. Com coentro, alho e uma fatia de pão velho fazes mil e uma coisas. Meto poejo e fica uma sopa; meto tomate e fica sopa de tomate; pele de bacalhau que sobrou do jantar do Natal, enterrado debaixo da terra, vem para cima e tenho uma sopa de bacalhau.
Quando vejo os programas da televisão os empregados dizerem ‘Sim, chefe!’, aquilo parece-me sempre uma coisa militar. Tem de haver muita disciplina na cozinha?
Tem de ser assim.
Porquê?
Porque eu tenho a tua saúde nas minhas mãos. Sentas-te aqui a comer e consigo-te envenenar em dois passos. Tão simples como isso. Se não houver regra e rigor lá dentro, tchau. Estou a brincar com a saúde pública. A minha cozinha também é assim. Quando eu abro a boca toda a gente tem de responder ‘Sim, chefe’, ponto final, parágrafo. Tem de existir ordem, regra e obediência. Pode haver cozinhas onde todos fumam charros e ‘está-se beeeeem, rock’n’ roll’ e depois o cliente apanha salmonela. Não tens noção de quantas intoxicações alimentares recebem diariamente no S. José. Uma cena surreal. E tudo nos restaurantes. Ninguém se intoxica em casa. Vou-te dar um exemplo: as ostras têm de estar mergulhadas dentro de água com 7% de sal e 3% de açúcar, para ver se respiram ou não respiram antes de servir. Se os meus empregados não responderem ‘Sim, chefe’ e te servirem aquilo estragado ficas com diarreia durante uma semana. Cozinha é tropa. E eu quero que seja assim. Há outras mais descontraídas, mas a minha é assim. Eu aprendi numa cozinha francesa. Mantínhamo-nos todos em ordem, ninguém falhava, quando o chefe falava todos ouvíamos e todos seguíamos as ordens. Por isso é que escolhemos aquele chefe para trabalharmos com ele. Não escolhi um conas para me dizer ‘Tá-se bem’.
Não há pessoas que se dão mal com isso?
Há. Trocam de profissão. Na minha cozinha não ficam, garantidamente. Escolheram mal a profissão na vida. Escolheste cozinha, não escolheste um paraíso, é para obedeceres às ordens do chefe e dares prazer às pessoas. Todos os cozinheiros têm o objetivo de serem chefes, ninguém entra na cozinha para ficar toda a vida na copa. Por isso é que escolhes um líder, alguém que te ensine a fazer esse caminho.
E entre os ‘soldados’, não há faíscas?
Há faíscas sempre. Eu também já fiz muita merda, já queimei muitas pessoas, já bati em muita gente. Não o vejo hoje em dia, também não permito que aconteça nas minhas cozinhas, mantenho ordem. Se queres saber como funciona uma cozinha tens de comprar um livro de um gajo que se suicidou no ano passado.
O Kitchen Confidential, do Anthony Bourdain.
Exatamente. Lês o Kitchen Confidential. Encontras ali toda a história verdadeira sobre o que se passa em todas as cozinhas.
É exatamente como ele conta no livro?
Puro e duro.
Hoje os chefes aparecem na televisão, nas revistas, têm uma grande aura.
São rock stars.
Quando começou cá em Portugal já era assim?
Não existia nada disso. Quando cheguei a Portugal fui ao banco abrir uma conta e quando disse que era cozinheiro o banqueiro fez aquele ar: ‘Cozinheiro…’. Hoje recebem-me com as portas abertas. A profissão veio do zero para o cem. Hoje somos estrelas de rock n’roll. No avião da TAP compro ticket económico porque quero comprar económico e passam-me para executiva. Não é o tipo de vida com que eu me identifique, principalmente esse lado de fama. Nasci no Leste, sou um puto pobre, não sei viver com isso. Quando acabei o programa tive de me isolar para o mato dois meses para as pessoas não falarem comigo. Não é uma coisa cool para mim, não é uma coisa fixe. Ok, chegámos a um certo estatuto. Mas o chefe de cozinha é um básico…
Básico em que sentido?
Em todos os sentidos. Os chefes de cozinha são como qualquer outra pessoa. Agora são todos estrelas – não tens um ou dois, são todos. É um pouco seca, para te ser sincero. Finalmente o mundo percebeu que um dos segredos para viveres melhor é saberes comer. Se comes salsichas todos os dias são 21 quilos de plásticos ao fim de um ano. Nós como cozinheiros desempenhamos uma função muito importante. Mas não somos o Keith Richards!
O Ljubomir não come comida de plástico?
Procuro o produto biológico, todas as semanas entregam-me hortaliças biológicas em casa, vou muito a supermercados alternativos. Mas também gosto muito de comer uma salsicha de Frankfurt. Muito mesmo. Gosto de fazer uma piza em casa com os putos. Como de tudo, não sou um fundamentalista. O que eu mais gosto? De entranhas. Para mim, da boca ao cu é a parte mais importante para se comer. Lombo, chicha, carninha, comem vocês. Eu gosto de entranhas. Mas não sou nada de especial. Sou a pessoa mais simples que podes conhecer.
E um McDonald’s?
Não gosto, mas como.
Quando foi a última vez?
Foi com os meus filhos para aí há dois anos. Estávamos a sair da ilha do Farol, e o meu filho mais velho diz: ‘Pai, bora lá parar ao McDonald’s’. Bora. Não tenho problema nenhum com isso. Junk food faz parte. É aquele momento em que tapamos o estômago. Não tenho nada contra. Tenho contra se os meus filhos forem lá…
Todos os dias?
Uma vez por mês já me incomodava seriamente. Não me dá segurança. Olhas para uma batata, um palito deste tamanho, aquilo é geneticamente alterado. O hambúrguer só não é cancerígeno porque é congelado. Pedes mal passado e eles dizem ‘não pode’. Porquê? Têm de passar os 85ºC para matar aquelas bactérias todas. Se os meus filhos comessem isso todos os meses… não permitia, é tão simples como isso.
É muito rígido com eles?
Não. Como pai sou do mais palhaço que pode existir, só faço disparates. Quer dizer, sou um pai rigoroso, mantenho ordem e regras – quando é cama é cama – e não vêm muita televisão. O Mateus só teve telemóvel aos 12 anos. São regras simples. Durante a semana não podem ver televisão. Durante o fim de semana cada um deles tem uma hora para ver televisão.
Isso é um bocado militar, ou não?
Na tua opinião. Mas o meu puto é campeão nacional de matemática. Sabe caçar, sabe pescar, se o deixar no mato durante seis dias ele sobrevive. Achas isso militar? Eu acho um puto espetacular. Uma vez chamaram-me para a escola para me dizerem que andava a educar o meu filho ao contrário porque aos 12 anos ele não tinha telemóvel.
Eles queriam que o seu filho tivesse telemóvel?
Diziam que estava diferente do resto da geração porque na turma dele era o único que não tinha telemóvel. Nesse dia decidi: ‘A partir de hoje sai da escola privada, vai para o público’. Joga basquete, anda no kickboxing, anda no Belenenses no futebol, anda de skate, faz seis desportos, tem algum problema? Com 13 anos já caçou um javali. Paga as férias dele com os amigos. E não lhe custa nada. Isto é militar? Consideras isso militar?
Só a parte da televisão…
Para quê, para o meu filho olhar para a tromba do Trump? A televisão é um desperdício de tempo. Querem ver desenhos animados? Bons filmes informativos? Veem no fim de semana, a semana é para a família e para a escola. Os meus filhos não se sentam no restaurante e [pega no telemóvel e fica vidrado no ecrã]. Pedem uma folha de papel ao empregado e fazem desenhos, jogos, o caraças. Acho isso muito saudável.
Há um bocado perguntei-lhe da moda dos chefes. Recordo-me de um filme em que um tipo dizia que era escritor e as mulheres ficavam doidas. Hoje passa-se isso com os chefes? Dizer que se é chefe de cozinha funciona como um afrodisíaco?
Não te sei dizer… Qualquer pessoa que está na moda, com alguma fama, tem esse toque afrodisíaco. Eu não sinto. Sou feliz e bem casado, acho que sou o homem mais feliz a esse nível – completamente apaixonado depois de 11 anos, cada dia mais. Sofro com isso? Sim. Depois deste programa tenho tido um assédio sexual total, em todo o lado, recebo mensagens, fotografias, etc., a toda a hora. É uma coisa que me aflige.
E tem muitos clientes chatos no seu restaurante?
Não posso dizer que tenho muitos clientes chatos. Existem clientes muito chatos. Há pessoas que são insuportáveis, não estão bem com a vida, antes de se sentarem já se estão a queixar.
Como se lida com essas pessoas?
Eu não lido, mando para a puta que os pariu.
Assim mesmo?
Assim mesmo, como te estou a dizer a ti. Não tenho paciência para lidar com snobs. Não estou cá para isso. Eu desempenho uma função que é dar prazer às pessoas. Há pessoas que pagam para eu lhes dar prazer. Sou um bobo da corte do reino, um simples bobo, mais nada. E quando vêm implicar comigo porque me consideram bobo aí é que fico fodido. Há pessoas que desde a reserva começam a implicar. ‘Não me trate por António Carlos, trate-me por dr. António Carlos’. E se fosses para a puta que te pariu? Se fosse eu a atender o telefone era o que lhes dizia. Nasceste dr., é isso? O importante é no cartão multibanco estar escrito dr. mas depois não tem onde cair morto. E obriga-me a mim a tratá-lo por dr.? Vai para a puta que te pariu. O António Costa é meu cliente e trato-o por António, não o trato por sr. primeiro-ministro. Trato-o por António porque é o nome que a mãe lhe deu. Há pessoas que são mal educadas e mal encaradas em qualquer situação e trato-as como acho que devem ser tratadas.
Com um pontapé no rabo?
Do que é conhecido do meu impulso, daquilo que se diz, sou exatamente assim: não aturo merdas. Já sofri tanto na vida que não estou para aturar essas pessoas. [faz um tom de voz nasalado com sotaque à tio]: ‘Agora quero o chefe aqui na mesa porque eu vim do Porto, quero que o chefe esteja aqui’. Ouve lá, e se fosses para a puta que te pariu? Trabalho 24 horas todos os dias, quero ir ver os meus filhos, só me faltava ter de me sentar contigo à mesa porque vieste do Porto. Não te conheço de lado nenhum nem te quero conhecer, sequer. Vieste aqui para comer. Isto não é um psicólogo. O tipo vê-te ao domingo na televisão e acha que é teu amigo de sofá. Não tenho saco para isso. Tenho os putos à minha espera, quero ir brincar com eles. E depois também há o oposto: tantos clientes que se tornaram meus amigos, grandes amigos meus. Mas não levo muita seca, até porque as pessoas já sabem o meu feitio.
E clientes com pedidos esquisitos?
O que são pedidos esquisitos?
Do tipo ‘quero bacalhau cozido só com bróculos’ ou ‘a comida não pode ter alho nem cebola’.
Aqui neste restaurante não existe. Comes aquilo que eu sirvo. Se não gostas tens de ir a outro restaurante. Tenho pena mas é assim. Se tiveres algumas intolerâncias, podemos tentar resolver. Pedidos especiais é proibido, não há nada disso. Agora lá em baixo no Bistro…
Pessoas com manias…
Estou cá para agradar ao cliente. Quando o cliente diz ‘Eu gostava de comer não sei quê’, a gente faz, não tem problema. Embora… acho que essas pessoas deviam comer mais vezes em casa. Se têm macaquices na cabeça comam em casa, simplifiquem a vida. Geralmente esse tipo de pessoas não é geração nova, não é geração média, é geração mais antiga, são tios de Cascais, acham que em qualquer sítio onde vão todos são empregados deles. Eu tive um restaurante em Cascais e acontecia muito. Ia à mesa desejar a boa tarde e dar as sugestões e havia um senhor que… [faz um gesto com as costas da mão como se estivesse a enxotar uma mosca].
Mandava-o embora?
Não olhava, sequer. Completamente ao desprezo, nem te olha na cara, tipo ‘desaparece daqui’. Este tipo de cliente é mais dessa geração. Acham que têm direito e que podem mandar nas pessoas. ‘Quero comer um esparregado, com um bife, e tem de ser grelhado, tá?’. E se fores comer para casa? Fazes tu o bife grelhado e o esparregado, porque eu ando há 30 anos a cozinhar para aprender a fazer uma coisa como deve ser. Posso-te até grelhar um bife. Mas faço-te uma batata soufflé. Agora, se vens com as tuas manias, vai comer para casa. Tem de existir aqui um meio-termo. São clientes, pagam os salários dos empregados, as contas da empresa, às vezes temos de aturar certas coisas. Mas há um limite. Em todos os restaurantes temos uma black list. Tenho uma black list de clientes de quem não aceito reservas.
Ai é?
Vêm com essas manias, para que é que vou aceitar reservas?
Dizem que estão cheios?
Poucos querem admitir, mas todos os restaurantes do país têm uma black list de clientes. Todos. Tens um cliente que é um chato, só te vai arranjar problemas, vai-te estragar o clima e o ambiente dos empregados todos, trazer stresse e problemas? Black list, é mais fácil dizer que está cheio do que aturá-lo. Tenho uma black list com uns 30 ou 40 nomes, é garantido.
E costumam ligar?
Costumam. Acho que ao fim de dois anos a ouvirem dizer que estamos cheios percebem que alguma coisa se passa. [imita o sotaque nasalado:] ‘Eh pá, vocês estão super na moda, nunca mais consegui uma reserva para ir aí comer’. Azar. Vai chatear os cornos aos outros.
Há um bocado estava-me a dizer que o primeiro-ministro é seu cliente. O sucesso de um restaurante também se mede pela quantidade de pessoas importantes que recebe?
Não, nada, nada a ver com isso. O Bistro só tem clientela famosa, este aqui não tem clientes famosos nenhuns, não é esse o objetivo. O sucesso de um restaurante mede-se pela satisfação e contas pagas. É a satisfação pessoal – estou contente pelo trabalho que faço – e tenho as contas pagas. Acho que isto é sucesso. Sucesso não é tornar-se o melhor, ter estrelas Michelin. Se as contas estão pagas, não devo nada a ninguém, e estou feliz na cozinha, está-se bem.
Qual foi o dia mais feliz da sua vida profissional?
Fogo… Um? Tive muitos, não te consigo dizer qual foi o mais feliz. Primeiro: há dois anos ter sido escolhido o melhor restaurante do mundo pelo Monocle, que usou um critério genial que não critica só comida – critica comida, atendimento, reservas, decoração do restaurante, música… E o Monocle é uma das melhores revistas do mundo, um magazine de referência.
Como celebraram? Abriram champanhe? Apanharam uma bebedeira?
Não me lembro de apanharmos uma bebedeira. Devemos ter feito um brinde. Há muito essa ilusão: ‘Hu-huu!!!’, champanhe por todo o lado, mas não é assim. Já festejámos muito, acho eu. Fizemos um brinde. Segunda melhor coisa na cozinha: trufa branca. Comprámos há três anos a maior trufa branca da Europa. E ter fodido muitas vezes com a minha mulher na cozinha, foi das melhores coisas que me aconteceram na cozinha. E ter cozinhado para algumas pessoas, como o Bourdain, etc. Fez-me ficar orgulhoso de estar onde estou. Ja cozinhei para tanta gente supostamente importante no mundo, mas depois há aqueles que respeito.
A cozinha neste restaurante é aberta para a sala. Não devia estar blindada do que se passa lá fora, para cada um estar completamente focado no seu trabalho?
A cozinha é o nosso palco, nós estamos a dar show. O cliente está cá para ver uma peça genial, por isso tem que se expor tudo. Na Comporta tinha uma cozinha redonda, os clientes sentavam-se à volta e viam tudo. As cozinhas antigamente, até aos anos 70, eram fechadas por causa da higiene. Todos os cozinheiros usavam bigodes e trabalhavam descalços. Havia galinhas e o chão estava coberto com serradura, por isso tinham de ser fechadas, o cliente não podia ver. Cozinheiros com bigodes sujos, gordos e porcos.
E suados…
Todos suados e malcheirosos. Galinhas a correrem de um lado para o outro… São épocas. Hoje em dia as pessoas estão limpas. Tenho empregados com mais faculdade que a maior parte dos clientes que entram aqui. O Nelson Amaro fala sete línguas. Não há nenhum empregado meu que fale menos de três línguas, se não não os contrato, sequer.
É assim tão importante?
É fundamental, vêm cá clientes de todo o mundo. Na minha cozinha deve-se falar cinco ou seis línguas – tenho um iraniano, um dinamarquês, um mexicano, uma brasileira, o Maldonado é português, um bósnio-português. A troca de culturas fundamental, queremos mostrar às pessoas esse mundo. E já não é preciso gritar na cozinha, não é preciso já bater em ninguém. Durante o serviço está em silêncio, nem é preciso falar, se olho para eles já sabem o que é preciso. Esta gente tem de ser exposta. Como estive muitos anos na guerra, na cena de prisão, sufoco, bunker, quero é tudo aberto, quero janelas.
Houve uma pessoa que esteva na guerra em África e que me disse que a guerra é uma excelente escola; só tem um pequeno problema: podes morrer durante a aprendizagem.
É exatamente isso. Eu também uso essa expressão. A guerra foi a melhor escola que eu tive na vida. Só que durante a escola morreram muitos.
O que se aprende na guerra? A sobreviver?
Em primeiro lugar, aprendes a não ter medo. Agora, também há pessoas que não ganham nada com a guerra, perdem tudo.
Ficam com traumas?
Eu também tive traumas. Acho que quem esteve na guerra não se safa disso. Mas aprende-se muito. A mim deu-me estaleca de vida. Deu-me estaleca para não ter medo, para chamar as pessoas pelos nomes, para tratar as coisas como elas são, deu-me força para trabalhar 24 horas sobre 24 se for preciso – estive seis anos sem tirar um dia de folga… A guerra deu-me esse caparro, essa força, essa resistência. Que se foda! Bora para a frente. Não ter medo, não ter receios. ‘Ah é? É isso que vocês acham? Então o meu filho vai já sair da vossa escola’. Se não tivesse tido essa experiência, era um bocadinho: ‘Vamos lá analisar isso, vamos pensar sobre o assunto para tentarmos encontrar uma solução’. A guerra dá-te um bocadinho o sangue-frio para saberes onde é que andas e para não teres medo de pisares em cima dos mortos. [pausa] O que é mais difícil na vida é pisares um corpo.
Está a dizer em sentido literal ou em sentido figurado?
Em qualquer sentido que queiras entender. No primeiro dia em que pisas um morto aprendes a andar. Porque se não o pisares vais tu ficar ali.
Aquela mota que está lá fora é sua?
É.
É impressionante.
É um monstro [risos].
É um dos seus prazeres?
É uma das coisas de que gosto muito, mas não sou viciado. Gosto mais de caçar do que de andar de mota. Gosto mais de pescar do que de andar de mota. Tive um acidente grave, ia morrendo, fiquei quase em coma com a minha mulher grávida. Ainda tive de fazer duas operações plásticas – fiquei mais bonito desde o acidente. A minha mulher vendeu as duas motas que eu tinha e estive três anos sem mota. Depois pensei: ‘Vou comprar uma mota’. Queria ter uma boa mota, andar com velocidade e não ter medo só porque tive um acidente.
É como cair do cavalo e voltar a montar.
Aquilo estava a remoer-me um bocadinho e eu não gosto disso. Vamos é já partir para a velocidade.
Quais são os seus luxos?
Caça, pesca… O meu luxo principal é o mato. Sou um bicho do mato, o que eu gosto é de passar tempo no mato, com os meus filhos, com os animais do mato. Tenho uma marca que se chama Bicho do Mato exatamente por causa disso.
Muita gente fala do prazer de pescar. Mas pescar é basicamente ficar à espera que o peixe morda o isco, não é?
A pesca de corrico, que é a de que eu mais gosto, é uma pesca em que nunca paras, estás sempre a atirar a cana para a água, sempre a trocar as amostras à procura de robalo, corvinas, anchovas. Como sou hiperativo, trabalho 16 horas todos os dias, pescar relaxa-me a cabeça. Não me importo de estar ali sentado cinco horas com a cana na mão, na praia, a não pensar em nada. Adoro.
Não fica nervoso de não ter nada para fazer?
É o único momento em que descontraio. Eu nunca me deito antes das quatro, cinco da manhã. Nunca. E acordo às nove. O meu ritmo de vida obriga-me a ter um apagão. Dizem que é importante dormir para viver melhor. Eu não sei dormir, não sei para que é que as pessoas dormem. Se pudesse não dormia. Por isso é que preciso da pesca e da caça – estar sozinho em cima de uma árvore com uma besta à espera de um javali é como se fosse um descanso. Mete-me os níveis no lugar.
E o lado mais violento não lhe faz confusão nenhuma…
Tenho o gozo todo de espetar-lhe a faca a seguir no pescoço. Já fui acusado de ser psicopata pelo PAN porque dei uma entrevista ao Expresso a dizer que quando dou um tiro a um javali corro sempre para lhe espetar a faca no coração e acabar com o sofrimento. Espeto-lhe a faca, ele está a morrer e dou-lhe festinhas. Fui acusado de ser psicopata por causa disso. Eu pergunto: como é que a mãe e os avós dessas pessoas faziam cabidela em casa? Seguravam nas galinhas e com um machado cortavam a cabeça. A mim não me faz impressão nenhuma, nem no ser humano. Pego-te num braço, dobro-te, torço-te. Já vi muita coisa. Mas acho que não é só por ver. Não digo que até gosto, mas… [risos]
Disse-me que trabalha quantas horas por dia? 16?
Na boa. 14, 12, 16.
A vida assim sempre a trabalhar às tantas não é uma chatice?
Pareço-te um gajo infeliz? Pareço-te um gajo com problemas de família, psicológicos? Devo ser das pessoas mais concretizadas na vida. Tenho família ótima, filhos ótimos, um trabalho do caraças. Estou mesmo feliz. Faço aquilo de que gosto, ando com a mota que quero, vou à caça quando me apetece. Não me falta nada.