Gabriel Abrantes. “O Diamantino era um filme cheio de ambições, tinha tudo para dar errado”

Gabriel Abrantes. “O Diamantino era um filme cheio de ambições, tinha tudo para dar errado”


Depois da triunfante estreia em Cannes, chega dia 4 às salas Diamantino. Uma paródia futebolística mas, acima de tudo, política. A fazer-nos pensar em Ronaldo.


À entrada da Estufa Fria, em Lisboa, uma espécie de carro de campanha coberto de autocolantes: Diamantino, cachorrinhos felpudos, os bons e os maus da fita para uma história que sabe dar-se a esses maniqueísmos. Tudo em cor de rosa,  que é este o carro que anda há dias às voltas à cidade a promover Diamantino. Título para a primeira incursão de Gabriel Abrantes pela longa-metragem, ao lado de Daniel Schmidt, mas também nome (a fazer-se adjetivo) para o futebolista de dimensão planatária a que Carloto Cotta deu um sotaque açoriano. Lá dentro, onde Gabriel Abrantes nos espera, rodaram-se algumas das cenas do filme que, depois do Grande Prémio da Semana da Crítica em Cannes, chega por fim às salas de cinema. As cenas em que, ao comando de uma ministra Ferro (Joana Barrios) a dar ares de Schäuble, a Dra. Lamborghini (Carla Maciel) levará a cabo uma série de experiências genéticas, e mais não dá para contar. Vale só dizer que andará isto entre uma história da Cinderela e uma comédia romântica. Mas muito política. E muito “virada ao contrário”. Como esta entrevista, em que o realizador faz a primeira pergunta:

Viste o filme recentemente?

Vi várias vezes: na altura da estreia em Cannes, na abertura do Curtas Vila do Conde e de novo no Queer [Lisboa], com o São Jorge a abarrotar de gente.

No Queer foi muito fixe. Em Vila do Conde não estava, contaram-me, foi uma reação mais fria. Acontece. Em comédia, às vezes há essas diferenças. Aconteceu no Ennui ennui [curta-metragem de 2013]: numa sessão, uma reação louca; noutra sessão, um frio… gelo.

Isso vem ao encontro da pergunta com que ia começar, uma chamada de capa do Jornal de Letras:  “Quem vai à bola com Gabriel Abrantes?” Um trocadilho com o título do filme, mas que resume bem a estranheza com que o teu cinema pode ser recebido. E o Diamantino terá – tem vindo a ter já, desde França – uma projeção que as curtas nunca teriam.

Tem sido interessante o percurso dos filmes. São filmes muito particulares e a maioria das curtas são experimentais. São filmes em que propositadamente, eu sozinho ou em colaboração com o Daniel [Schmidt], fazíamos brincadeiras, experiências com a maneira de os atores representarem, que era muito artificial, com histórias que tinham saltos narrativos surrealistas ou não lógicos. Isso alienava imensa gente, acho. Eram filmes com o poder de seduzir algumas pessoas, mas também de afastar outras. 

No caso do Diamantino, parece-te que esse estranhamento pode vir da exploração de vários géneros, sobrepostos, também do vosso tipo de humor?

Géneros cinematográficos? Sim. Isso, brincar com as linguagens, o uso de um tipo de humor que é um humor torcido mas também muito particular: há cenas que não se percebe se são para ter piada ou não. No Diamantino, trabalhámos imenso para fazer um filme que fosse bastante mais aberto ao público em geral. Que pudesse ter referências super fáceis, como o Cristiano Ronaldo ou as irmãs da Cinderela, com uma representação do bem e do mal com muito pouca ambiguidade – há um pouco, no Diamantino ou nas detetives [Cleo Tavares e Maria Leite]. Mas a ministra Ferro, a Helena Guerra, realizadora, ou realizador [Filipe Vargas], e as manas [de Diamantino, interpretadas pelas gémeas Anabela e Margarida Moreira] são o mal puro. Não há qualquer ambiguidade. São personagens muito planos, muito simples. 

Porquê?

Para simplificar. Sabemos que já temos um bocado esta intuição para a loucura, ou para a esquizofrenia, para [a mistura de] imensos assuntos – e neste filme tocamos toda uma listagem de temas contemporâneos – por isso quisemos apostar numa estratégia narrativa um bocado mais simples, ou clássica. O Diamantino segue mais ou menos as regras da comédia romântica, também.

Da comédia romântica e dos contos de fadas. A Cinderela, de que acabaste de falar, é uma referência óbvia.

Só que com alguns twists. A Cinderela é o Diamantino, um homem, e ele é que é naïf. Mas o Carloto, o personagem do Diamantino, foi a maior diferença neste filme: em vez de estares meia hora a tentar trabalhar um personagem, tens uma hora e meia, que permite ao espectador passar por várias etapas com ele. De início, sentes uma repulsa – não é bem repulsa, mas ele é o craque um bocado autocentrado, superficial, obcecado com o corpo, etc. – mas depois percebes que é um craque que é muito burro e começas a achar isso cómico. No final, percebes que é uma pessoa com um coração enorme e sentes empatia. Era essa a ambição: que o Diamantino acabasse por  seduzir o espectador no fim do filme. Isto nas curtas não acontecia. Nas curtas, os atores são dobrados, falam de uma maneira super artificial; aqui queríamos mesmo isto. E o Carloto tem uma inventividade louca que também traz imenso ao personagem. Muitas das curtas fizemos com atores não profissionais. Acho que poder trabalhar um personagem destes com o Carloto mudou o filme. 

Mesmo assim não deixaram de correr aqui, e isto já não é uma curta-metragem, riscos que outros realizadores não correriam. Não me esqueço de uma das reações que ouvi: um filme com tudo para dar errado, mas que dá super certo.

E deu errado durante 12 meses. Na sala de montagem, ao longo de 12 meses, foi desilusão após desilusão. A história não funcionava, nada batia certo, havia imensos buracos, imensos problemas de foco, imensos problemas de som… O terror absoluto. Tivemos que parar a montagem para gerir emoções durante um tempo. Resolvemos muitos dos problemas com os hologramas, com os anúncios, que são tudo coisas feitas na sala de montagem. Mas demorámos imenso a encontrar essas soluções. 

Falas dos anúncios de propaganda protagonizados pelo Diamantino como um novo D. Sebastião. 

Sim. Por exemplo, quando a Aisha vai ao computador procurar as contas do Diamantino, tudo o que aparece nesse ecrã foi desenvolvido na montagem. E conta muita história. 

Aquela cena em que descobrimos a password das irmãs, que era qual?

Rich bitches. Tenho um amigo, o Jorge Quintela, realizador e diretor de fotografia que já trabalhou comigo algumas vezes, diz que as minhas rodagens são a grande onda: super ambiciosas, mas com tudo para dar mal. Posso espalhar-me à grande – e já me espalhei à grande. Os filmes sobrevivem, de uma forma ou outra. O Diamantino era isso: um filme cheio de ambições, mas que tinha de facto tudo para dar errado.

Acreditas que pela complexidade da história que queriam contar?

Também por ser um filme demasiado ambicioso para o orçamento que tínhamos. Do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual], com coprodução de França e do Brasil. Tivemos que o rodar em cinco semanas, que não é suficiente para fazer tudo o que fizemos, é uma loucura. Quando o filme foi selecionado para Cannes [para a Semana da Crítica], eu e o Daniel ainda estávamos num túnel de desgraça. Não tínhamos distância para perceber que aquilo tinha chegado às nossas intenções. Mas em Cannes as pessoas acharam que era um objeto forte e aceitaram. Depois, a Vanity Fair e a Hollywood Reporter, que fizeram as primeiras críticas.

Ótimas.

Falavam dos contos de fadas que simplificam aquilo tudo, de uma sátira política, de uma comédia romântica virada ao contrário – ou muito surpreendente. Falavam de todas as coisas das quais tínhamos falado nas nossas conversas. Começou a acontecer também pessoas que não eram de cinema ou que não gostam muito de cinema de autor ou de um cinema mais experimental virem-nos dizer: “Que filme tão fora, nunca tinha visto nada como isto, mas adorei.” 

A capacidade deste filme de chegar a públicos absolutamente diversos tem a ver com as camadas todas com que foi construído. Pode ser visto em toda a sua complexidade, mas não deixa de resultar se se quiser ver apenas a primeira, a que está mais à superfície.

Sim, mas não tínhamos já noção de que o filme tinha conseguido todas estas coisas. Continua com imensas fragilidades. Mas, para muita gente, a nível emocional, de divertimento, e também em termos políticos, o filme funciona. Não estávamos nada à espera. Achávamos mesmo que nos tínhamos espalhado. 

Mas veio o Grande Prémio da Semana da Crítica. 

Na minha esperança máxima, pensava que talvez o Carloto pudesse ganhar um prémio. Eles leem sempre aquela descrição antes do prémio, mas como para brincar com o suspense o júri é sempre super ambíguo, pode sempre ser ou não ser, e já me aconteceu, pela descrição, parecer o meu filme e depois não ser e ficar super desiludido e deprimido, estava a repetir na minha cabeça “não é, não é”. Quando disseram, fiquei chocado. Não estávamos mesmo à espera. Mas foi muito fixe, porque vendemos o filme para estreia comercial nuns 10 ou 12 países, uma coisa que acho que não teria acontecido se não fosse o prémio. Não deixa de ser um filme bastante… fora. 

E cá está a ser distribuído pela NOS. 

Sim, vamos ver como corre. Em França, pessoal que não é do cinema curtiu.

Por falar nisso, fazem ideia se o Ronaldo já viu o filme?

Não. Mas saiu uma notícia no jornal da Juventus a falar num “filme inspirado no Ronaldo”, etc. Imagino que não o tivessem feito se ninguém o tivesse visto. Mas o filme vai muito para além dele. Há as referências mais superficiais mas, quando entras na personalidade do Diamantino, já tem pouco a ver com o Ronaldo. 

Verdade. Tiveram algum receio em inspirarem-se nele de forma tão… literal, nalguns aspetos?

É um bocadinho como o South Park. O filme assume-se como uma paródia: a paródia do desportista, da pessoa muito rica que faz adoções internacionais. E a paródia está completamente protegida pelo direito de livre expressão, por isso… Sim, tivemos essas discussões, claro. Mas se não podes criticar alguém em forma de comédia, a liberdade de expressão começa a desaparecer. 

A partir disto, e da questão política de que falavas há pouco, e este filme vai a todas: o problema dos refugiados, as questões de género, a questão da evasão fiscal…

… a muralha [que o governo se prepara para construir à volta de Portugal], o Brexit, o Trump…

Exato, todo esse tema da ascensão da extrema-direita. Sei que, quando pela primeira vez pensaram neste filme,  não havia Diamantino, não havia um jogador de futebol, sequer. Estavam já a pensar em todos estes temas?

Não. Foi sempre um filme político, mas a primeira ideia até veio depois do terramoto do Haiti, em 2010, e tinha a ver com a forma como países ricos se afirmam fazendo operações filantrópicas depois de um desastre qualquer. A história era a de duas miúdas do Haiti que fingiam ser órfãs, fugiam e iam para o Brasil, adotadas por uma atriz famosa tipo Angelina Jolie, que queria ajudar o Haiti. Era um filme mais frágil esse que tínhamos escrito inicialmente. Depois, acabámos por transportar isso para Portugal, para 2018, e para as questões do momento: o Trump, o Brexit, os refugiados, que se mantêm, agora de países diferentes. Os detalhes são diferentes, mas o discurso político é semelhante. 

Como é que chegaram daí à ideia do futebolista de dimensão planetária?

Quando decidimos rodar em Portugal, pensámos imediatamente no Carloto. Estávamos a discutir sobre se [a personagem] poderia ser um ator famoso português, mas de repente tivemos a ideia: futebolista, claro. Óbvio. E o Carloto ser esse futebolista, e esse futebolista adotar um refugiado, faz tudo super sentido, é daquelas clarividências que não te aparece até a luz acender na cabeça.

Dizias no início que procuraram fórmulas muito simples, fórmulas clássicas. O Carloto dizia-me no outro dia que trabalhar contigo é sempre muito “simples” também. Mas o Diamantino não é nada simples.

Os guiões são bastante construídos. As ideias vão-se aglomerando, pouquinho a pouquinho. Há momentos em que pode tornar-se demasiado – como é que temos os neofascistas, a propaganda, o futebol, a genética, quer dizer, tudo – e em que fico sem energia e desisto. Aí, o Daniel fica ali um mês a bater na tecla, a tentar resolver. É a cena fixe der sermos dois. Não sei exatamente do que é que o Carloto está a falar, mas realmente há uma simplicidade. Chamar-lhe-ia mais cumplicidade. Sinto uma enorme cumplicidade com ele. Das ideias que traz para a rodagem, há imensas que aceitamos e adoramos. Esse é o prazer de trabalhar com o Carloto e isso é que acho simples. Descrevo a minha relação com o Daniel [de forma] igual: é uma maneira de trabalhar simples, em que não há grandes entraves, não há discussões. Com alguns atores ou alguns montadores há discussões de “acho que o personagem não faria isto”, e ficas ali numa lengalenga de uma hora, que até pode ser produtiva. Mas com o Carloto e com o Daniel não é assim.

Tem a ver também com a liberdade a que tu e o Daniel Schmidt se permitem? Porque cães gigantes num jogo de futebol,  numa névoa cor de rosa…

A cena fixe também é teres várias cabeças. Os cães foi uma ideia que eu tive…

Conta-me de onde vêm os cães.

Nós tínhamos a ideia de pôr o Diamantino a entrar numa zona zen. A cena mais clichê de zona zen era o jogador de futebol, um fundo negro, assim tudo escuro, e ele está ali concentrado, assim com umas linhas tecnológicas no chão, qualquer coisa assim. Acho que há publicidades do Ronaldo assim: num abismo negro a correr, por aí fora.

Acho que era um a um champô.

Não queríamos isso, queríamos o oposto: queríamos representar a beleza do personagem, que é aquela infantilidade, aquela ingenuidade, através dessa visão interior que ele tinha do futebol. Começámos a pensar em opções acriançadas. Eu e o Daniel adoramos animais, vídeos de animais do YouTube, etc. [risos] e juntámos as duas coisas. Pensei que se calhar era demasiado ridículo ou estúpido, que era demasiado…

Fora?

Isso. Demasiado fora para poder fazer parte do mundo. Mas o Daniel começou a rir-se imenso quando lhe fiz a proposta, disse: “Não, isso é muito bom, é muito cómico, está ótimo.” Num filme que estivesse a realizar sozinho talvez não tivesse feito isso, talvez achasse que as pessoas achariam muito estúpido, que não funcionava. Ter o Carloto ou o Daniel a validar ou rejeitar certas ideias, ou vice-versa, dá-me confiança para arriscar.

Qual é o limite? Sentes que levas os limites demasiado longe para algumas pessoas?

Para algumas sim, de certeza. O Alexandre Melo escreveu uma crítica que saiu hoje [ontem] no Jornal de Letras em que diz que o filme tenta ser absurdo, mas que se assistirmos às discussões no parlamento inglês sobre o Brexit, aquilo parece uma comédia de Monty Python. Que mais surreal e absurdo não existe e que, por isso, o Diamantino não chega a ser tão absurdo como a realidade. O que até é triste. Aquela figura da ministra Ferro não se compara com o Trump, com a máquina do Trump, que foi literalmente uma estrela de televisão, da reality TV. E, sei lá, ideias mais lúdicas e surreais como os cãezinhos também existem nos vídeos da Katy Perry, não a tirámos do nada.