Rafael Henzel.  “Viva como se estivesse de partida”. E assim foi

Rafael Henzel. “Viva como se estivesse de partida”. E assim foi


Em novembro de 2016, apenas seis pessoas sobreviveram ao desastre aéreo que vitimou quase todo o plantel da Chapecoense. Uma delas foi um jornalista, fanático pelo clube brasileiro e por futebol, que agora se despediu da vida após sofrer um enfarte numa partida com amigos.


Destino. Aquela entidade mística que ninguém sabe se existe ou não; que assusta e intriga, mas ao mesmo tempo fascina e seduz de forma irresistível. Por vezes – tantas vezes – é engraçado; de uma graça estranha, até incompreensível à primeira, mas bastante esclarecedora quando finalmente se revela. Noutras, não tem piada absolutamente nenhuma.

Este é um desses últimos casos. Na noite de terça-feira, quando se encontrava a fazer aquilo de que mais gostava na vida, Rafael Henzel partiu. Tinha 45 anos, era jornalista – especializado na narração desportiva – e estava a jogar futebol com amigos quando sofreu um fulminante ataque cardíaco.

A história já seria triste por si só, não fosse uma particularidade: Rafael Henzel foi um dos seis sobreviventes da queda do avião que vitimou 71 pessoas em novembro de 2016, entre as quais praticamente todo o plantel e equipa técnica do clube brasileiro Chapecoense, que se encaminhava para disputar a primeira mão da final da Taça Sul-Americana em Medellín, na Colômbia. Mais de sete dezenas de pessoas mortas e apenas seis a escapar da tragédia: três jogadores, um técnico aeronáutico, uma hospedeira de bordo e um jornalista que desaparece pouco mais de dois anos depois… a jogar futebol. Destino, essa entidade vil e cruel.

Um verdadeiro embaixador A experiência daquela madrugada de 29 de novembro de 2016, Rafael Henzel nunca a esqueceu – e não era para menos, claro. E, apesar de frisar várias vezes que a sua vida se manteve igual após ter sobrevivido à tragédia, a verdade é que o jornalista acabou mesmo por dar vários passos bem diferentes dos que dava antes desse dia, escrevendo um livro e viajando pelo Brasil e um pouco por todo o mundo para dar palestras motivacionais, sempre tendo como pano de fundo a situação vivida nos céus de Medellín.

“A dor da perda pesa, mas aos poucos você vai naturalizando e tentando levar uma vida normal. Se isso for possível, é muito importante para iluminar a vida de outras pessoas”, dizia Rafael, que voltou ao trabalho 40 dias depois do acidente, apresentando dois programas diários na rádio Oeste Capital FM, em Chapecó, além de narrar os jogos da Chapecoense por todo o Brasil e também no estrangeiro.

“A minha profissão não é sobrevivente de acidente aéreo, é jornalista”, frisava também um homem que nunca encarou nenhuma situação pelo lado negativo: “Não consigo pensar naqueles que se foram com tristeza, procuro sempre lembrar deles com alegria. A partir de agora, nada será problema para mim. Vou apresentar programas de rádio com dois graus e achar ótimo! Tudo é motivo para agradecer: estar aqui, ter uma segunda oportunidade, os meus amigos”.

Com o passar do tempo, falar do acidente tornou-se “algo natural”. “Quando estou num aeroporto, todos chegam e me perguntam sobre isso: ‘Como foi aquela noite?’ E eu respondo: ‘Não vamos tomar nada, vai ser assim a seco?’ (risos) A primeira vez que peguei um voo comercial, a comissária veio me cumprimentar e dizer que o piloto queria me conhecer e tirar uma foto. A primeira coisa que ele me disse foi que a aeronave tinha tantas toneladas de combustível! (risos)”, contou um dia um homem que partiu sete costelas, sofreu uma pneumonia e lesões nos pés no acidente, passou 20 dias internado em recuperação e estava a jogar futebol seis meses depois.

o show não pode parar O futebol, já se percebeu, era a paixão da vida de Rafael Henzel. Especialmente a sua Chapecoense, que tantas vezes lhe testou o coração – como naquele jogo na Arena Condá para a última jornada do Brasileirão, em 2017, quando um golo de Túlio de Melo aos 90’+5’ garantiu o apuramento para a Taça Libertadores, um ano depois da tragédia. “O meu coração transborda de felicidade!”, exclamava entre lágrimas.

Viva como se estivesse de partida. É verdade: faltava dizer o nome do livro publicado por Henzel em 2017 e ele aí está, simples como o homem que o escreveu. “As pessoas leem o livro e percebem que a vida é muito simples, a gente é que complica muito. Nós viemos de uma grande tragédia mas já não somos vítimas: fomos vítimas lá, mas hoje estamos vivendo nossa vida na plenitude novamente. Eu escolhi, entre o sofrimento e a dor, dar a volta por cima, atacar os meus medos, e foi isso que consegui fazer”, explicava há cerca de ano e meio, revelando ter tido acompanhamento psicológico apenas durante cinco dias, quando ainda estava internado na Colômbia.

“Morrer não me passou pela cabeça. Eu jamais pensei na palavra morte. Eu renasci no dia 29 de novembro e foi na Colômbia”, terão sido as frases mais vezes proferidas por Rafael Henzel nos últimos dois anos e cinco meses. Na noite desta terça-feira, não terá tido também grande tempo para pensar no assunto: enquanto disputava o tradicional jogo de futebol semanal com os amigos, sofreu um ataque cardíaco e o coração não mais voltou a bater, deixando a esposa e um filho de 13 anos.

Em homenagem ao jornalista, “um símbolo da reconstrução do clube”, a Chapecoense pediu à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) o adiamento da partida contra o Criciúma, para a Taça do Brasil, agendada para a noite de ontem, com o prefeito de Chapecó a decretar luto oficial de três dias na cidade. O organismo que rege o futebol brasileiro, todavia, rejeitou o pedido do clube catarinense. Esteja onde estiver, certamente Rafael Henzel aplaudiu a decisão: afinal de contas, o espetáculo não pode parar e um jogo da Chapecoense será sempre a melhor forma de evocar a sua memória.