Valência. Afogando as mágoas da morte de Bonora à custa de copos de orchata

Valência. Afogando as mágoas da morte de Bonora à custa de copos de orchata


O Valência fez 100 anos. Nasceu no Bar Torino após uma morte que extinguiu o Deportivo Español. Os seus fundadores eram ambiciosos. E o primeiro presidente foi escolhido por moeda ao ar.


Valência tem vivido um ambiente de alegria fagueira e não é porque estejam aí à porta os festejos de Santa Marinera que se encherão, em breve, de um povoléu infrene, os bairros de Cabañal, Canyamelar e El Grao, gente aos milhares seguindo as peregrinações dos penitentes com capirotes na cabeça que irão rezar pelos mortos de todos os mares do mundo. É por causa do futebol. Comemoram-se os cem anos do Valência Club de Futbol e se, na Liga, o sétimo posto ocupado é apenas meio satisfatório, as presenças na final da Copa do Rei e nos quartos-de-final da Liga Europa ainda entusiasmam os adeptos da equipa do morcego.

Muitos afirmam que o Valência é, após o Real Madrid e o Barcelona, o terceiro clube de Espanha em quantidade de adeptos. Nada que, no dia 18 de março de 1919, Octavio Augusto Milego Díaz pudesse adivinhar quando se tornou presidente da recém-nascida organização através de uma não pouco controversa decisão obtida por moeda ao ar. Não faço ideia se lhe saiu cara ou coroa. Mas sei que lhe saiu um lugar indelével na História.

Ora bem, aqui entra mais um episódio ligeiramente etílico. Amigos leitores, vocês têm noção de quantos e quantos clubes do mundo foram idealizados à mesa de bares e restaurantes? Ui! A lista seria impublicável nos carateres que ocupam esta prosa. Pois bem, no n.o 8 da Bajada de San Francisco, rua entretanto desaparecida, havia um bar chamado Torino. Foi aí, não longe da atual Plaza del Ayuntamiento, que um grupo de moços de boa estirpe lamentava, por entre umas cañas, a morte de Luis Bonora.

Bonora era uma espécie de ídolo do futebol valenciano de então. Jogava no Deportivo Español e, no início de janeiro de 1919, num jogo amigável contra o Elche, espatifou o perónio e provocou uma comoção geral. Pior ainda: três dias depois da violenta fratura, Luis sofreu uma embolia e não houve médico que o salvasse. O seu desaparecimento foi sentido de tal forma pelos desportistas da cidade que o Deportivo optou por simplesmente se extinguir. Abria-se um vazio considerável. 

Ambição Nessa mesa do Bar Torino, dois homens dominavam a conversa: Octavio Augusto Milego e Gonzalo Medina. O bar era famoso pelas suas orchatas, essa bebida feita de água, açúcar e tubérculos que o divino Eça não dispensava em nenhum dos seus romances. A tal ponto que também tinha a alcunha de Horchatería Novajarque. Como a mezinha não leva álcool, pode supor-se que o pleito não tenha decorrido em tom de discussão, mas apenas de mera cavaqueira. Fosse como fosse, a decisão foi tomada: havia que encontrar um substituto para o Deportivo Español e esse substituto seria o Valência Futbol Club. Pleno de ambições! Uma equipa capaz de medir forças com todas as outras do resto do país e abandonar uma sempre redutora versão regionalista do projeto. Eis que do bolso de Octavio sai a moeda: entre ele e Gonzalo, um seria o presidente e o outro o organizador de festejos. Cargos ligeiramente desequilibrados, à primeira vista, mas não se esqueçam que organizar jogos de futebol nas primeiras décadas do séc. xx também não era tarefa desprezível.

Já vimos que a moeda caiu para o lado de Milego, e Medina deitou mãos ao trabalho. No dia 21 de maio, em Castellón, no dia dos festejos de Santa Quiteria, o Valência entrava pela primeira vez em campo e perdia para o Gimnástico de Valência por 0-1.

No emblema, o vermelho e amarelo de La Senyera, a bandeira da Comunidade Valenciana. Por cima, ainda que sinistro, o morcego. No dialeto valenciano chama-se rat penat. A sua história perde-se na noite dos tempos e na lenda de Jaime i de Aragão, o Conquistador, rei de Aragão, Valência e Maiorca, conde de Barcelona e de Urgel, senhor de Montpellier. Quando conquistou a cidade, em 1238, o seu estandarte exibia um dragão, símbolo da realeza de Aragão. Mais práticos, os valencianos trataram de transformar o dragão num morcego de asas abertas, provavelmente mais assustador do que o seu colega apenas mitológico.

Os jogos no Campo de Algirós, ainda de terra batida, tornaram-se rapidamente populares. O arrendamento atingia a verba de 100 pesetas por mês, mas raramente os seus cinco mil lugares não rebentavam pelas costuras. O Valência não demorou a crescer para além de uma mesa de café pejada de orchatas. Passou a ser do mundo.