Moçambique chora os seus mortos e tenta voltar à vida

Moçambique chora os seus mortos e tenta voltar à vida


As estradas que ligam a Beira ao resto do país foram restabelecidas. Com a descida das águas vêm os receios de epidemias. Júlio Mondlane, coordenador da Cruz Vermelha moçambicana em Sofala fez um ponto de situação ao i.


Depois da tragédia causada pelo ciclone Idai, Moçambique chora os seus 446 mortos confirmados, tal como as muitas outras vítimas ainda por apurar. Na Beira, para onde foram levados os habitantes resgatados dos arredores, mais de meio milhão de pessoas tenta pouco a pouco regressar à normalidade, numa cidade que viu cerca de 90% dos seus edifícios destruídos.

“Graças a Deus já temos a estrada aberta”, diz ao i Júlio Mondlane, coordenador da Cruz Vermelha moçambicana na província Sofala. Desde ontem que a Beira já não está isolada por terra do resto do país, incluindo Maputo, de onde está a ser enviada a maioria da ajuda humanitária. Mondlane refere que “o nível das águas já está a baixar, já é possível alcançar as pessoas.”, permitindo que chegue ajuda a muitas zonas até então cercadas pelas enxurradas de água, lama e detritos, que inundaram 1276 Km² de território – o equivalente a 122 mil campos de futebol. Durante dias, milhares de pessoas só tiveram acesso aos poucos bens que foi possível levar de helicóptero.

O coordenador da Cruz Vermelha diz que as operações de resgate estão na sua reta final, estando agora o foco na segurança alimentar e em garantir abrigo e condições de saneamento básico às populações. O objetivo é evitar epidemias de doenças como diarreias e cólera – que resultam de contaminação fecal através de água contaminada – ou tifo e malária, que têm uma grande incidência na região – estando entre as principais causas de morte – e cujos vetores de transmissão proliferam nas águas estagnadas que resultarão do recuo das cheias.

“Já estão a aparecer focos de diarreia”, conta Mondlane, que diz que o aumento no número de casos de malária “ainda não é muito expressivo”, mas nota um aumento notório da quantidade de mosquitos na região. Teme-se que a situação possa piorar se não forem tomadas medidas urgentes. O número de mortos por falta de condições básicas poderá até ultrapassar o já elevado número de mortes causado pelo ciclone em si.

A Cruz Vermelha já tem 122 voluntários na Beira, treinados para ajudar a restabelecer as condições de higiene e saneamento na região, tal como preferir as picadas de mosquitos, esperando conseguir colocar brevemente mais 300 voluntários nos restantes distritos.

Mondlane refere a necessidade de que sejam levados a cabo levantamentos por toda a região, “para saber o que está a acontecer”, e saber quais as áreas prioritárias para onde alocar recursos. Os dados mais recentes apontam para que estejam em centros de acolhimento mais de 109 mil pessoas, estimando-se que 400 mil tenham ficado sem casa.

“Alguns centros estão lotados”, reconhece o coordenador da Cruz Vermelha, que acrescenta que o lento regresso à normalidade será dificultado pelo facto de que “a maioria dos abrigos estão montados em escolas, o que significa que as crianças não podem retomar as aulas”. Mondlane considera que uma das principais prioridades do governo moçambicano é abrir novos centros de acolhimentos para as populações, para descongestionar os estabelecimentos de ensino.

A população tenta subsistir perante as adversidades, e mesmo nas condições mais difíceis já tem os olhos postos no futuro. “Ninguém gosta de ficar nos centros de acomodação”, considera o coordenador da Cruz Vermelha, que acrescenta que “as pessoas estão ansiosas por sair dos centros e regressar à sua vida normal e às suas casas, para poderem iniciar o processo de reconstrução”. Mondlane estima que as populações não tenham de ficar nos abrigos mais de 10 ou 15 dias, dependendo das condições climatéricas e do apoio do governo e das organizações não governamentais. Questionado sobre quais os planos para o restabelecimento a longo prazo, o coordenador da Cruz Vermelha moçambicana responde que a urgência é o imediato, mas garante: “Nós somos uma das organizações que tem estado no terreno desde o primeiro minuto, até antes do Idai, e estaremos muito depois”. Remata que “há muito trabalho a fazer”.

 

O papel das alterações climáticas

A tragédia que se abateu sobre Moçambique não apanha de surpresa quem conhece bem as causas e os efeitos das alterações climáticas. É o caso de Filipe Duarte Santos, especialista em alterações climáticas que na edição da última quarta-feira do i assinalava que “Moçambique é um país muito vulnerável às alterações climáticas por ter uma costa baixa e, portanto, facilmente inundável”. “Está-se a observar uma maior percentagem de ciclones tropicais muito intensos em termos de velocidade do vento e da quantidade de precipitação, os ciclones de categoria cinco [o nível mais elevado]”, notava ainda o presidente do Conselho do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, também professor na Universidade de Lisboa. Para Filipe Duarte Santos, “a situação de um país desenvolvido, como é o caso dos EUA, e a de um menos desenvolvido, como Moçambique, é bem diferente”, lembrando que o primeiro dispõe de recursos financeiros e infraestruturas que lhe permitem lidar de forma mais eficaz com o problema.

Fora do círculo científico-académico, há também quem tenha lembrado que o ciclone Idai é uma evidência das alterações climáticas, cujos responsáveis são os países mais desenvolvidos e não os outros, como Moçambique. É o caso do escritor José Eduardo Agualusa, que afirmou em entrevista ao Público: “Países como Moçambique não contribuíram para o aquecimento global. Não têm indústria, não têm agricultura intensiva, etc. Acho que com países como os EUA ou a China não se põe a questão de ajudar Moçambique; é quase uma indemnização. Esses países têm obrigação de reparar o que fizeram. Moçambique é uma vítima neste contexto, uma vítima absoluta. Isto tem de ser parte da discussão. Não estamos a falar de ajuda. Portugal não faz o favor de ajudar Moçambique. Portugal tem obrigação de reparar os danos que causou. Mas muito mais obrigação tem a China, que até está presente em Moçambique”.