Liverpool. Um grupo de apardalados ingleses perdeu-se nas margens do Sado

Liverpool. Um grupo de apardalados ingleses perdeu-se nas margens do Sado


A primeira visita a Portugal do adversário do FC Porto na Liga dos Campeões transformou-se num tormento. O Vitória de Setúbal deu aos ingleses uma daquelas lições de futebol que deveria ter valido goleada gorda.


Aceitemos que, nessa tarde de 12 de novembro de 1969, o Liverpool ainda não era o monstro devorador de taças europeias em que entretanto se transformou. Tinha uma presença na meia- -final da Taça dos Campeões de 1964-65 (logo na estreia) e uma final perdida da Taça das Taças no ano seguinte. Esperaria ainda por 1973 para ganhar a sua primeira Taça UEFA. Mas, ainda assim, homessa!, por que diacho vieram os ingleses até Setúbal tão cheios de medo? Acreditem que era a pergunta que se fazia um pouco por todo o lado aqui neste país que é o que o mar não quer, como dizia Ruy Belo.

Verdade que, na época anterior, os sadinos tinham feito uma carreira de truz na Taça das Feiras, como então se chamava, caindo apenas aos pés do Newcastle United, depois de terem despachado com toda a facilidade gente fina como o Olympique de Lyon e a Fiorentina. Mas, ainda assim…

Ora, acabar os 90 minutos da primeira mão da segunda eliminatória a vencer por 1-0 o Liverpool e queixar-se de que a vantagem para o jogo da volta podia estar nos três ou quatro de diferença podia considerar-se um luxo. E foi mesmo isso que sucedeu. Reparem: “Um-zero. É pouco. Está longe de dizer em números o que foi em méritos o jogo do Bonfim. Não surpreendeu o Vitória, apesar da excelência da sua atuação em vários períodos, pois todos o sabemos capaz desse estilo vivo, alegre, de futebol hábil e espreitando a baliza como ambição suprema. Mas surpreendeu, dececionando, a equipa de Liverpool, uma das mais fortes de Inglaterra (prova-o a classificação no campeonato), mas que se apresentou como um grupo medíocre, vulgaríssimo, tímido, descrente de si próprio. Uma desilusão total!”

O FC Porto Tomara, obviamente, o FC Porto apanhar um Liverpool assim na sua próxima etapa da Liga dos Campeões, já aí ao virar da esquina. FC Porto, aliás, que também tem que ver com este episódio bonito da história do futebol português. Bill Shankly, o treinador mágico que fez dos vermelhos das margens do rio Mersey uma equipa arrasadora, tinha vindo no domingo anterior ver o Vitória de Setúbal-FC Porto para o campeonato. Veio, viu e mal acreditou no que viu: o Vitória deu uma coça das antigas ao seu adversário nortenho, ganhando por nada menos de 5-0. Seria por isso que entrou em campo tão encolhido? Disposto sobretudo a levar um resultado que pudesse ser virado do avesso perante o público infrene do Kop? Se assim o pensou, há que dizer que o resultado ter-lhe–á dado razão. Até certo ponto…

Tomé marcou o golo solitário dos portugueses aos 40 minutos. Grande Tomé! Bom amigo, pessoa de excelência. Merece estar aqui, sublinhado a dourado, e muito mais. Ficava toda a gente suspensa da reação inglesa para a segunda parte. Geralmente, os teimosos britânicos são de se rebelarem contra situações de inferioridade. Dá-lhes aquela veneta de orgulho ilhéu e respondem até que o ar se lhes esgote nos pulmões. Não foi assim. Animado pela vantagem, o grupo de José Maria Pedroto perdeu de vez a tramontana. Jacinto João, Guerreiro, Wagner e José Maria deram cabo da cabeça de uns atoleimados Callagham, Hughes, Smith e Wall e puseram o guarda-redes Lawrence em apuros por uma, outra e outra vez. Saiu o defesa Alfredo e entrou mais um avançado: Arcanjo.

Do outro lado, nada. “Nada. É que o Liverpool podia portar-se assim na defesa mas, logo que se apossasse da bola, mostrar a categoria que não pode deixar de ter, a técnica, a velocidade, a imaginação, o association em passada larga à boa maneira das boas equipas inglesas. Nada disso. Foi defender, defender, defender, com seis, sete, oito, nove, todos numa aflição, sem rei nem roque, com chutos para qualquer lado”.

Para Anfield ficava a ameaça de um golo curto. Nessa época entrara em vigor a regra de os golos fora valerem por dois em caso de empate na diferença nos resultados. Deu um jeitão aos de Setúbal. Um penálti convertido por Wagner aos 23 minutos mostrou aos da casa que o trabalho teria de valer mangas arregaçadas até aos ombros. Mas houve também o autogolo de Strong, aos 56, que já punha o Vitória com 3-0 no total. Aí sim, o tal orgulho bretão fervilhou nas veias inglesas. Três golos (Smith, 66, Evans, 88, e Hunt, 90) deram-lhes o triunfo, mas ficaram pelo caminho.