1. Vivemos tempos muito delicados – seja na política, seja na economia, seja na compreensão da sociedade em termos mais amplos, presenciamos (e participamos em) mudanças estruturais que ocorrem a um ritmo galopante. A celeridade da vida contemporânea – propulsionada pelo constante fluxo informativo, em que o muito importante se dilui no muito inútil; por uma moda, feita ditadura inorgânica e difusa, do politicamente correto que incita à adesão a ideias feitas, a frases bonitas, conquanto desprovidas de substância, e à rejeição de reflexões mais ponderadas e rigorosas dos factos, protagonistas e situações – está transformando as estruturas sociais, sob a nossa distração geral. Mais rigorosamente, o ritmo cibernético que marca o passo da vida de hoje adequa- -se mal ao ritmo próprio do ser-se humano, não permitindo, pois, que o ser humano desenvolva e se projete na sua persona. E daqui o corolário lógico e lamentável que pauta as sociedades hodiernas: a despersonalização do indivíduo, senão mesmo a “desindividualização” de cada um de nós.
2. De facto, passámos de pessoa para indivíduo, com o crescente (imparável?) fenómeno de privação ou relativização da personalidade; agora estamos em transição de indivíduo (ou seja, de ser individual, dotado ainda de alguma autonomia ética e de ação) para “membro de qualquer coisa”. Já não somos pessoas, já não somos indivíduos; agora limitamo-nos a ser membros do Antifa, membros do grupo socialista da Trofa, membros do grupo da direita regeneradora do Barreiro, membros do Facebook, membros do Instagram, membros da Associação LGBT, membros do Benfica, membros do Porto, membros da Sanjoanense, membros da Associação Recreativa disto e daquilo… somos membros de tanto grupo que às tantas nos esquecemos de que somos pessoas com uma ligação jurídica especial a um Estado, através de um vínculo designado por cidadania. Somos, antes do mais, pessoas; e a nossa personalidade reflete-se democraticamente na e pela nossa qualidade de cidadãos. A desqualificação da personalidade e da cidadania constitui a verdadeira ameaça à democracia – e o maior presente para os inimigos da liberdade (marxistas, trotskistas rendidos aos luxos burgueses à la Bloco de Esquerda, socialistas dominados pelos interesses especiais e os demais totalitários que se dão bem com os BE…), pois permite-lhes controlar mais facilmente a sociedade. Aí onde não há personalidade, onde não há individualidade, não haverá necessariamente liberdade.
3. Porque a lógica dos grupos e desta cultura do membrismo é precisamente a de submeter cada um de nós a estruturas de poder, dirigidas por vanguardas (sejam elas tecnológicas, políticas, culturais…). O que é, pois, afinal de contas, a democracia de hoje? A democracia, infelizmente, passou a reduzir-se a uma agremiação de pequenas ditaduras; é uma agremiação de movimentos, grupos de base não democrática, difusos, mais ou menos informais, que regulam a nossa vida até ao mais ínfimo pormenor (mesmo que não tenhamos consciência deste facto). Daí que o Bloco de Esquerda – com 7% de preferências eleitorais! – consiga dominar a vida política, cultural e económica nacional: hoje, desde os capitalistas portugueses (os poucos que restam) até aos investidores estrangeiros, passando pelos jornalistas, todos têm medo do Bloco de Esquerda e da ala radical do PS. Em Portugal, nada se faz sem o beneplácito prévio desta esquerda radical que, pela exploração da cultura do membrismo e do domínio das microditaduras que compõem a democracia portuguesa de hoje, logrou alcançar um peso manifestamente desproporcional face à sua dimensão político-eleitoral. Desta forma, o Bloco de Esquerda conseguiu moldar o PS aos seus anseios e prioridades políticas (há uma OPA do BE ao PS em curso, liderada por Pedro Nuno Santos) – e adaptar o discurso mediático ao seu estilo.
4. É a cultura do membrismo que explica que todos os diretores das televisões, as “celebridades” nacionais, os apresentadores de televisão e afins tenham rigorosamente o mesmo discurso. A mesma opinião. O mesmo pensamento… sobre todos os temas! E que mesmo nos debates de política não haja debate: há apenas intervenções múltiplas, consecutivas, repetindo a mesma ideia; falta, pois, a contraposição de visões da atualidade diversas que carateriza os debates… Isto acontece precisamente porque o poder mediático tem medo de desagradar à máquina de poder da esquerda: sabe-se que o desagrado da esquerda em relação à opinião de uma atriz, de um apresentador de televisão ou de um diretor de programas poderia significar o fim da sua carreira. A máquina trituradora da esquerda radical não daria qualquer trégua até à destruição em praça pública dessa personalidade que lograsse afirmar algo que não jogasse com a cartilha imposta pela esquerda à sociedade. Até porque, para as figuras públicas – sobretudo do entretenimento –, a imagem é uma commodity: uma mercadoria com valor de mercado. Eventuais campanhas negativas made in Bloco de Esquerda e PS radical fariam com que o valor desta commodity baixasse, o que significaria menos oportunidades, menos valor de mercado – logo, menos dinheiro. Portanto, o que é engraçado é que estes radicais de esquerda que – no discurso e apenas no discurso! – são antimercado jogam com essas mesmas leis do mercado para controlar mais eficazmente os centros de poder social.
5. E a hipocrisia parece não ter limites. Os mesmos diretores de TV, os responsáveis pelos órgãos de comunicação social, os protagonistas do show bizz que nos davam longas preleções sobre as teorias feministas da sociedade (algumas corretas), sobre o tratar o ser humano com dignidade, que proclamavam uma luta até ao fim contra os populismos, que fazem (e bem!) campanhas pelos direitos humanos… afinal, são os mesmos que não se importam de humilhar concidadãos, colocando-os nus (numa nudez absolutamente gratuita) para agradar às massas, em horário nobre de domingo; não se importam de submeter mulheres a uma lógica de “contratação self-service”, como se as mulheres fossem uma qualquer mercadoria fungível; não se importam de recuperar o arquétipo do “coitadinho”, recorrendo a estereótipos e preconceitos sociais, recorrendo à figura do agricultor à procura da mulher urbana, mediante a intervenção divina da estação de televisão. Tudo isto para ver quem ganha as audiências do dia e capitaliza mais dinheirinho em publicidade. É assim: os moralistas duram… enquanto não chega o dinheirinho. Chegando o dinheirinho, moralismo, chauzinho! Até nisto assistimos a uma “bloquização” da sociedade portuguesa…
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Escreve à terça-feira