Bagan. Nem o sargento Jackson abateu os campeões da liberdade

Bagan. Nem o sargento Jackson abateu os campeões da liberdade


Um jogo de futebol marcou a história da rebelião indiana contra o Raj, o poder britânico sobre a que era, no tempo da rainha Vitória, a joia mais resplandecente do império onde o sol nunca se punha. Um orgulho nacional perpassou por todo o país


Para quem não saiba, joga-se futebol na Índia desde meados do séc. xix, bem mais cedo do que as primeiras e quase burlescas aventuras dos irmãos Pinto Basto em Portugal. Em 1893, a Indian Football Association pôs em marcha a IFA Shield, uma competição disputada entre alguns dos clubes indianos então fundados, como o Calcutta FC, o Dalhousie AC ou o Mohun Bagan, que é onde vai desaguar esta historieta. Acrescente-se pelo caminho que não se tratava propriamente de uma competição nacional. Resumia-se ao estado de Bengala Oriental e tinha como maioria de participantes clubes nascidos no seio dos militares britânicos instalados na região da que era, à época, a capital do Raj, isto é, a Índia colonizada, joia mais brilhante do império no qual o sol nunca se punha, Calcutá de seu nome. Mas não deixo de sublinhar, ao correr da pena, que esta IFA Shield é a competição a eliminar mais antiga de sempre a seguir à Taça de Inglaterra. Convenhamos que não é despiciendo.

Ora bem, como seria de esperar, mais preparados, mais conhecedores dos pormenores que definiam o jogo por si inventado, os ingleses passaram a dominar a prova com uma perna às costas, ou melhor, com um fuzil às costas, como se pode ver pelo nome dos clubes vitoriosos: Royal Irish Rifles; Royal Welch Fusiliers; King’s Shropshire Light Infantry; Rifle Brigade; Gloucestershire Regiment; King’s Own Scottish Borderers; 93 Highlanders e por aí fora. Basicamente, e como diria o divino Eça, uma grandessíssima estucha para os pobres dos indianos, que não estavam à altura de fazer frente a tão bem equipados adversários. E o “equipados” vem totalmente a propósito. Porque a malta da tropa tinha tudo o que era necessário para se apresentar em campo com o brilho e a dignidade exigíveis a oficiais da rainha Alexandrina Vitória, imperatriz da Índia desde 1876. Já por seu lado, os indianos teimavam em jogar descalços. Isso mesmo. Era como se tivessem alergia às botas de travessas, que eram caríssimas. Ao passar os olhos por fotografias de equipas formadas totalmente por indianos nessa fase da passagem do século, podemos observar como enfaixavam elegantemente os pés à moda dos cavalinhos de dressage da Escola Espanhola de Equitação de Viena.

Opressão A imposição do Raj, sobretudo durante a vice-regência de Lord Curzon, ficou para a História como um dos mais tristes episódios de opressão de um povo. O imperialismo militarizado e os colonos das mais proeminentes famílias inglesas atiraram os indianos para um patamar que atingia frequentemente a degradação física e moral. Os movimentos de não cooperação estavam à beira de se organizarem.

No dia 29 de julho de 1911, um acontecimento totalmente imponderável agitou a sociedade de Calcutá e, pode dizer–se, transformou-se num terramoto que espalhou réplicas por toda a Índia. O Mohun Bagan defrontou o East Yorkshire Regiment, a elite das forças armadas estacionadas em Bengala Oriental, na decisão da IFA Shield. A tensão cresceu, eletrizante, à medida que o dia do jogo se aproximava, e o entusiasmo popular atingiu tamanho grau de excitação que foi preciso requisitar autocarros e barcos a vapor para trazerem uma multidão de toda a parte para Calcutá. As ruas entupiram-se com o povoléu que caminhava resoluto para o Vivekananda Yuba Bharati Krirangan, mais prosaicamente Salt Lake Stadium, o maior estádio do mundo na época, com lugar para 120 mil espetadores. No mercado negro, bilhetes de duas rupias eram vendidos a 15 – sete rupias era o ordenado mensal de um professor primário, o mesmo que custava um par de chuteiras. Como macacos, havia uns que se penduravam nas árvores, nos postes de iluminação, ou subiam até aos terraços das casas em redor. As autoridades britânicas trataram de arrumar todos nas bancadas à boa moda discricionária dos omnipotentes: uma principal para as autoridades oficiais, militares e colonos; outra destinada apenas a babus, os indianos de castas superiores. O povo, esse, que continuasse a trepar pelas paredes como lagartixas.

Quando, a 15 minutos do fim, o sargento Jackson fez o 1-0, a desilusão tombou sobre o estádio em forma de silêncio. Mas, logo a seguir, Shibdas Bhaduri empatou. E, no segundo derradeiro, Abhilash Ghosh garantiu a vitória. Um brado uníssono ecoou por toda a cidade: “Vande Mataram!” – Venera-te Mãe!, a canção nacional da Índia. Os pés descalços tinham dado sinal a todos de que o mito da invencibilidade inglesa não passava disso mesmo. O jornal “Englishmen”, de Calcutá, escreveu: “Mohun Bagan has succeeded in what the Congress and the Swadeshiwallas (movimento que encorajava o boicote aos produtos estrangeiros) have failed to do so far: to explode the myth that the Britishers are unbeatable in any sphere of life.”

Pelo céu estralejaram foguetes, as pessoas atiravam para o ar aquilo que lhes estava mais à mão, de camisas a chinelos, de flores a pedaços de lixo. Mohun Bagan deixara de ser uma equipa de futebol: passou a ser um país oprimido, rolando na poeira, que levantava finalmente a cabeça com orgulho.