Ordem vai dispensar médicos de sigilo em caso de suspeitas de transplante ilegal

Ordem vai dispensar médicos de sigilo em caso de suspeitas de transplante ilegal


Convenção contra o tráfico de órgãos entrou em vigor em Portugal a 1 de março. O objetivo é que nenhum caso passe impune. Parlamento ultima alterações ao Código Penal para incluir pela primeira vez este crime


Tolerância zero ao comércio de órgãos e aos transplantes ilegais. É esse o objetivo da Convenção do Conselho da Europa Contra o Tráfico de Órgãos, que Portugal ratificou em novembro de 2018 e entrou em vigor a nível nacional no início deste mês. Os trabalhos de adaptação da legislação ainda não estão concluídos, mas há mudanças à vista. O parlamento está a ultimar uma alteração ao Código Penal, que passará a tipificar o crime de tráfico de órgãos. E os médicos vão ser dispensados de sigilo perante casos suspeitos e serão incentivados a colaborar com as autoridades.

A proposta foi feita à Ordem dos Médicos na sequência do relatório produzido por um grupo de trabalho criado pelo governo em maio do ano passado e o bastonário confirmou ao i que será iniciado em breve o processo para alteração do código deontológico. Passará a permitir aos médicos pedirem escusa do segredo médico perante suspeitas concretas de que os doentes possam ter obtido órgãos ou transplantes de forma ilegal, por exemplo tendo pago pelas intervenções noutro país, uma figura que já está prevista para situações de abuso de menores ou violência doméstica.

“Atualmente os médicos já podiam pedir ao bastonário que os dispensasse do sigilo perante suspeita de tráfico de órgãos, mas trata-se de consolidar essa situação de ponto de vista legal até numa situação em que o doente fosse posteriormente apresentar queixa na justiça”, explica Miguel Guimarães, que considera a convenção um passo fundamental na defesa dos direitos humanos. “Recebemos a proposta do grupo de trabalho há duas semanas e vamos agora iniciar um processo de discussão pública de 30 dias para que possa haver contributos adicionais, o processo normal, mas é uma proposta muito bem fundamentada que deverá ser implementada.”

Em Portugal os casos documentados de órgãos e transplantes obtidos de forma ilícita, a troco de pagamentos por exemplo em clínicas estrangeiras, são raros, mas o médico admite que lhe têm sido comunicadas algumas situações. Pessoalmente, acompanhou apenas um caso quando ainda era interno. Um dia, quando estava ao serviço na urgência do S. João, deu entrada um doente com complicações de um transplante renal. Quando a equipa quis saber onde tinha sido feita a intervenção, perceberam que tinha sido na Índia, um dos países historicamente associados ao comércio de órgãos.

A nível mundial, o fenómeno tem merecido uma crescente preocupação. Em 2004, a Organização Mundial de Saúde (OMS) adotou uma resolução no sentido de apelar aos Estados Membros para proteger os grupos mais pobres e vulneráveis do chamado turismo de transplantes e estima que 5% a 10% dos transplantes renais a nível mundial envolvam rins removidos/adquiridos de forma ilícita.

O turismo de transplantação, centrado sobretudo nos rins, acabou por desenvolver-se em países onde a legislação era omissa e não impunha dádivas altruístas ou proibia a venda de órgãos, como Índia, Paquistão ou China. A procura por parte de estrangeiros oriundos de países onde a escassez de órgãos tende a aumentar com a melhoria da esperança de vida ou menor sinistralidade rodoviária acabou por alimentar um mercado onde os transplantes chegam a custar 180 mil euros enquanto as pessoas que vendem os órgãos ganham uma pequena fração. Um relatório do Parlamento Europeu publicado em 2015 reuniu registos internacionais e dava conta de pagamentos aos vendedores entre pouco mais de 1000 euros na Índia a 10 mil euros na Turquia, com muitas falsas promessas. “Na maioria dos casos, a quantia recebida pelos vendedores era 25% a 50% menor do que foi inicialmente prometido”. Já este ano, as Nações Unidas alertaram no relatório sobre tráfico humano para uma realidade ainda mais dramática: entre 2014 e 2017 foram detetadas 100 vítimas a quem foram retirados órgãos, a maioria do Norte de África e Médio Oriente.

As estimativas mais recentes do think tank norte-americano Global Financial Integrity sugerem que o tráfico de órgãos está no top 10 dos crimes mais lucrativos, rendendo 740 milhões a 1,5 mil milhões de euros anualmente.

 

Penas de três a 10 anos

Questionado sobre as alterações em curso agora que a convenção passou a produzir efeitos em Portugal, o Instituto Português do Sangue e Transplantação – que apoiou o grupo de trabalho e tutela esta área – remeteu para proposta de lei aprovada pelo governo a 31 de janeiro de 2019 e que está em apreciação no Parlamento.

A iniciativa que altera o Código Penal e o Código do Processo Penal está a ser trabalhada pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e tipifica o crime de tráfico de órgãos humanos. No preâmbulo do diploma, lê-se que, apesar de o ato de extração de órgãos humanos pode ser uma conduta penalmente proibida (se a vítima estiver viva existe o crime de ofensa à integridade física, por exemplo), há outras situações que se enquadram no crime de tráfico humano. Porém, até aqui o ordenamento jurídico-penal português não consagra o crime de tráfico de órgãos humanos com a densidade prevista na convenção que o país ratificou, o que obriga a mudar a legislação.

O projeto de lei prevê um crime de natureza pública, inserido no conceito de altamente organizada, “o que além de garantir que o Ministério Público tem sempre legitimidade para promover o acesso penal, permite o recurso às diligências de obtenção de prova e a aplicação dos mecanismos processuais reservados à investigação dos crimes mais graves e complexos”, diz o preâmbulo do diploma. A proteção das vítimas também é reforçada. A proposta de lei estabelece uma pena de prisão semelhante tanto para quem promover o tráfico de órgãos como para quem beneficiar dele ou for cúmplice, de três a 10 anos. O Código Penal passa também a prever uma pena de prisão de 1 a 5 anos para médicos ou outros profissionais que obtenham órgãos, os transplantem ou atribuam a recetores diferentes do que seriam elegíveis de acordo com as boas práticas e os critérios gerais para transplantação, como urgência clínica e compatibilidade. Estabelece-se ainda que as penas são agravadas de um terço se a conduta tiver sido praticada de forma organizada ou se a vítima for especialmente vulnerável.

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O IPST deu ainda conta de que, após ser aprovada a alteração do código deontológico dos médicos de forma a prever a escusa do sigilo, há já uma proposta de protocolo de atuação para os profissionais de saúde envolvidos na transplantação, “destinado a orientar estes profissionais sobre como atuar do ponto de vista médico, ético e legal quando se confrontam com casos suspeitos ou confirmados de tráfico de órgãos, e possam reportar estes casos às autoridades competentes para efeitos de investigação criminal”.