Uma dia de atividades especiais no Jardim Zoológico de Lisboa inicia este sábado uma semana de ações de sensibilização em torno do Dia Mundial do Sono, que se assinala a 15 de março. Miguel Meira e Cruz, presidente da Associação Portuguesa de Cronobiologia e Medicina do Sono, preparou uma conferência sobre o que podemos aprender com o sono dos animais, dirigida aos mais novos mas não só. Pretexto para uma conversa com o especialista da Faculdade de Medicina de Lisboa sobre as curiosidades do reino animal e os erros dos humanos.
O que nos ensina o sono dos animais?
Há aspetos que nos permitem entender a evolução do sono. Todos os animais têm aspetos característicos: os cães rodam três ou quatro vezes antes de se deitarem, os cavalos travam as pernas mas podem dormir em pé. Temos isso em comum: uma necessidade de criar uma atonia muscular. Vamos silenciando os músculos da cabeça para os pés, por isso é que damos cabeçadas quando estamos sonolentos. Chegamos a uma altura do sono, o sono REM, em que os músculos são desligados: só os músculos cardíaco e respiratórios é que ficam a funcionar para sobrevivermos. Todos os outros estão silenciados, se não fosse assim reagiríamos por exemplo aos sonhos que estamos a ter. Isso acontece por exemplo na doença comportamental do sono REM: uma pessoa sonha que está a ser atacada e pode saltar de uma janela em fuga. Os animais ajudam-nos também a perceber a importância do sono. Ratinhos saudáveis se forem privados de sono alguns dias morrem.
No ser humano qual é o limite?
Não se fazem experiências, mas é conhecido o caso de Randy Gardner que ficou 11 dias sem dormir com efeitos graves. Mas há outras curiosidades do reino animal que são muito interessantes: há animais que se tivessem um sono REM muito exacerbado e uma atonia muscular como nós não conseguiriam sobreviver. Imagine-se as aves que fazem migração: não podem voar e não dormir. Dormem em micro-sonos com hemisférios cerebrais separados de cada vez.
Os golfinhos também só descansam uma parte do cérebro de cada vez.
Sim. Precisam de estar à tona da água e de respirar. Se não dormissem deixando um hemisfério ocupado com outras funções importantes, afogavam-se. Os morcegos também são um caso curioso: dormem de cabeça para baixo mas não caem. Deveriam cair: a certa altura o sono exige a tal atonia muscular, deixam de ter força para agarrar o que quer que seja. Mas a natureza providenciou-lhes um ato reflexo que faz com que, quando perdem a tonicidade muscular e pesam para baixo, estendam automaticamente as garras e se prendam às árvores. São mecanismos de segurança que os animais têm até para não estarem tão vulneráveis à predação. Os flamingos ou tigres dormem com duas patas pousadas: se surgir uma ameaça, podem fugir. Os animais que têm menor risco de serem atacados têm um sono mais contínuo.
Quer dizer que os nossos antepassados dormiriam menos?
Sim, interrompiam o sono mais vezes. Mesmo hoje aquelas pessoas que dizem que acordam uma ou duas vezes durante a noite, desde que voltem a dormir, isso parece ser um resquício dessa preparação que a natureza nos deu para reagirmos aos perigos quando vivíamos nas cavernas e podíamos ser atacados.
Agora que tínhamos condições para ter sonos mais contínuos, distraímo-nos com telemóveis, TV no quarto.
Pois. Na retina do olho temos células específicas que medem a intensidade da luz ao longo do dia. Ora, quando estamos com a luz dos telemóveis durante a noite a invadir a retina, estamos a dizer ao cérebro que é dia e acabamos por inibir a produção de uma hormona que se chama melatonina e que nos ajuda a dormir. O dia nasce com uma luz branca, azulada, e ao final do dia a luz do sol é vermelha, alaranjada. A luz branca afeta de forma significativa as células de que falei, a luz vermelha não. É por isso que, quando acordamos durante a noite, devemos evitar essas luzes brancas e azuis e substituí-las por luzes vermelhas, por exemplo naquelas luzes de presença que se coloca no quarto das crianças.
Que tendências lhe parecem mais preocupantes?
Esta é uma área complexa, existem cerca de 90 doenças do sono – temos doenças respiratórias como a apneia, insónia, pessoas que estão hipersonolentas por alterações neuroquímicas. No campo da insónia as questões comportamentais têm um peso muito importante: irmos para a cama a pensar em problemas, com computadores e telemóveis, não respeitarmos regras fundamentais de higiene do sono como ingerirmos estimulantes como a cafeína ou exercício físico intenso perto da hora de deitar – aumenta a temperatura e precisamos de descer a temperatura ao longo da noite para dormir bem. Penso que um dos problemas é a falta de diagnóstico. O slogan deste ano do Dia Mundial do Sono é “sono saudável, envelhecimento saudável”. As pessoas habituaram-se a pensar que, com a idade, têm de dormir pior, acham que envelhecer é sinónimo de dormir mal e não é. Altera-se a estrutura do sono, naturalmente os idosos não dormem como os recém-nascidos, mas não têm de dormir mal e, caso isso aconteça, devem procurar ajuda. Um recém-nascido dorme 17 horas, um idoso não precisa.
Nos animais há por exemplo os koalas que também chegam a dormir 18 a 20 horas por dia. Há ligação?
Os koalas e os animais mais pequenos são animais com maior taxa metabólica, maior frequência cardíaca e isso exige maior tempo de sono. Os elefantes por exemplo dormem três, quatro horas. Quanto maior é o animal, à partida menor é a necessidade do sono. Isto em parte explica o tempo de sono dos recém-nascidos, mas os recém-nascidos humanos têm motivos adicionais para dormir tanto: o desenvolvimento do sistema nervoso central ocupa o metabolismo de forma muito intensa. E é durante o sono que a hormona do crescimento é produzida em maior quantidade. Mas voltando à questão das pessoas mais velhas: quando começamos a dormir temos primeiro um sono superficial chamado não REM e, passados 90 a 100 minutos, entra-se na tal tempestade cerebral que é o sono REM. Se a primeira fase da noite é passada a recuperar das componentes mais musculares e metabólicas, do cansaço, na segunda metade são favorecidos mecanismos de compensação intelectual, memória. É portanto sensato admitir que um recém-nascido e uma criança precisam de mais tempo em REM do que alguém mais velho.
Que sinais devem justificar uma ida ao médico?
Sempre que as pessoas entendam que o seu sono não é recuperador. Pessoas que acordam por exemplo mais cansadas do que quando se deitaram, o que é muito típico da apneia do sono. É também preciso perceber que a questão do sono adequado é algo muito individual. É muito comum a pessoa pensar que se a vizinha dorme oito horas, também tem de dormir. Isto não é necessariamente assim.
Há um recurso excessivo a medicamentos para dormir?
Sim. Hoje sabemos que para a insónia primária, quando não está associada a outra doença, o tratamento mais adequado são estratégicas cognitivo-comportamentais. A pessoa perceber que o sono é importante e os comportamentos que o prejudicam. A questão do telemóvel ao pé da cama, o estar a ver as horas a passar, isto aumenta ainda mais o alerta neuronal. Há estratégias simples como levantar-se da cama sem acender muitas luzes e só quando tiver sono é que se deita outra vez – vincula-se o aspeto positivo que a cama tem. Muitas pessoas fazem o contrário: ficam a olhar para o telefone, as horas passam, ligam o televisor do quarto, começam a pensar nas horas que estão sem dormir e no dia seguinte já vão olhar para a cama com este pensamento. Os medicamentos funcionam às vezes por curtos períodos. Qualquer medicamento só deve ser tomado depois de a pessoa ser avaliada e sendo seguida por um médico. E deve haver o cuidado de, o mais depressa possível, fazer o desmame mas com método. Ainda hoje vi um doente que, de um momento para o outro, tirou um comprimido que fazia e, como é lógico, o cérebro reage – pode haver uma insónia ainda mais intensa. Parece mais fácil pedir o medicamento ao vizinho e há fármacos de venda livre que são as doses mais baixas, mas a certa altura as pessoas estão a tomar dois ou três…
Em relação às crianças, a que sinais devem os pais estar atentos?
Um sintoma que é muito comum nas crianças com privação de sono é a hiperatividade. Muitas vezes, como os médicos não conhecem bem todos estes mecanismos, diagnostica-se síndrome de hiperatividade. Enfrascam-se os miúdos em ritalina quando, na verdade, têm défice de sono e se os pusessem a dormir adequadamente passava. Têm de ter regras e uma boa higiene de sono.
Quais são os erros mais comuns?
Há três anos publicámos um trabalho em que fomos avaliar o sono em irmãos. Tínhamos miúdos de seis e 12 anos. Nessas idades, a diferença entre o que deve ser o sono é mais de uma hora: as crianças mais novas devem dormir 11 horas. E o que víamos era que os mais velhos tinham défice de sono e os mais novos estavam a ir para a cama à hora dos mais velhos. Isto pode ser complicado de gerir porque os miúdos querem ficar com os irmãos. Além disso há uma série de comportamentos, o dar o tablet porque o miúdo não quer comer, tudo isto excita a criança e pode prejudicar o sono.
Entre as atividades programadas para o Zoo de Lisboa está a apresentação do seu livro “O Relógio Avariado”. Qual é a história?
É o primeiro livro no mundo dirigido às crianças a falar do funcionamento do relógio biológico. Conta a história de um lobo que decide ir à cidade e a contaminação lumínica é tanta que avaria o relógio. O lobo é um animal noturno: em vez de uivar durante a noite passa a uivar durante o dia, desconforta todos os animais da floresta, fica cansado, com fome. É uma forma de falar de todas estas questões, por exemplo para os efeitos dos telemóveis colocámos uns pirilampos que se alojam por cima da toca do lobo. É um livro infantil mas tem uma componente para os educadores – não é tanto para ler ao deitar mas mais na escola, para explicar porque é tão importante incutir rotinas às crianças e falar sobre a importância do sono.