Cuidadores. Uma rede invisível, sem retaguarda

Cuidadores. Uma rede invisível, sem retaguarda


Cuidam dos familiares 24 horas por dia, batem-se por mais apoios e um estatuto, gostavam de saber que ficará tudo bem se um dia faltarem aos seus, porque ninguém adivinha o futuro. Graça é o apoio permanente do filho de 23 anos, autista. Rosália cuida da filha com uma doença rara. Lurdes é o suporte…


“Se me acontece alguma coisa, quem cuida do João?”

“São muitos anos, há muita coisa para dizer”. Graça Canhão não perde a energia, mesmo que a tarefa vá sendo dura. Aos 52 anos, cuida 24 horas por dia do filho João, de 23 anos e quase 1,90m, portador de espetro autista severo com défice cognitivo, uma viagem que começou logo em bebé, quando percebeu aos três meses que o menino não era como os outros. “Tinha problemas de falta de ar, otites, rigidez nos membros, parecia daqueles bonecos chorões.” O pai não aceitou, separaram-se quando João tinha ano e meio. “Fiquei sozinha nas decisões e na responsabilidade, para o bem e para o mal.”

Tornou-se cuidadora, tentando conciliar tudo com o trabalho na receção de um hotel no Algarve. Dos três aos sete, João fez o infantário, conseguindo um adiamento da idade de saída junto do Ministério da Educação. Depois, a coordenadora do agrupamento escolar sugeriu-lhe uma instituição em regime diurno. Assim foi dos sete aos 13. “Por sorte eu estava a trabalhar em hotelaria e tinha alguma flexibilidade, podia mudar de turno quando ele ficava doente e, estando no Algarve, era um trabalho mais sazonal.”

Valia-lhe também a ajuda da mãe. Aos 13 sai a lei da inclusão, lembra. “O João vai para uma escola normal em Portimão, para uma sala em que ficou ele e mais dois miúdos. No início havia poucos apoios, as pessoas não se sentavam ao pé deles, os colegas afastavam-se, tudo pelo desconhecimento, por ser diferente.” O tempo traria mudanças, no filho e na comunidade: João tinha natação, musicoterapia, frequentava as aulas com um plano individual. “No final, eram dez miúdos com necessidades especiais e todos se apoiavam. Abriu-se uma porta: Todos os comportamentos do João melhoraram, a nível social, a nível alimentar.”

Mas a lei ditava que aos 18 tinha de sair. “Só havia duas hipóteses: ou ia para casa ou regressava à instituição”. Graça tentou a reintegração, mas os comportamentos de João mudaram do dia para a noite. “Passados quatro meses foi parar à urgência psiquiátrica. O João que eu conhecia desapareceu, estava completamente descompensado. Não tinha vocação para estar fechado numa sala a fazer trabalhos manuais.” Quando o filho estabilizou, tentou uma segunda vez, mas o resultado foi o mesmo. “Comecei por pôr baixa mas estou há quatro anos em casa com ele”, diz Graça, que entretanto, por motivos de saúde, deixou de poder contar com o apoio da mãe. Recebe o subsídio para assistência a filho com doença crónica, cerca de 500 euros/mês, que esticam para pagar casa, água e luz. E acaba em setembro. A pensão do filho são 260 euros. João está sem acesso a terapias e atividades, se não as que a mãe vai insistindo que façam todos os dias, os passeios à beira mar com uma rotina certa. “Se me acontece alguma coisa, o João não tem ninguém. Não tenho retaguarda, vai para a rua?”.

Nos últimos tempos Graça mobilizou-se para as ações de sensibilização em torno dos cuidadores informais e esteve entre os familiares recebidos pelo Presidente da República. Está confiante nas novas medidas, mas defende que importa também garantir acesso a instituições que olhem cada caso a nível individual, porque os cuidadores também envelhecem, um dia podem faltar. “É ano de eleições, mas o que se fala hoje amanhã está esquecido. Se não insistirmos em dar visibilidade, ficamos no fundo e ninguém mais se lembra”. Ao longo dos anos, sentiu falta de apoio para o filho mas também para si. “Nunca tive apoio psicológico. Senti-me muito isolada, sentimo-nos discriminados. Uma vez, tinha 12 ou 13 anos, precisou de uma análise e quando acordou da anestesia no hospital teve uma reação muito agitada. Mandaram-no sair para a rua, teve uma crise. Ficou com feridas de andar de rojo no chão e não houve ninguém que nos ajudasse.” A mudar alguma coisa, além do apoio financeiro e psicológico aos cuidadores, gostava que o tempo que estão em casa contasse para a Segurança Social. “Hoje é como se não estivéssemos a trabalhar e sabe Deus.”

“Costumo dizer que sou invisível, o estado não sabe quem eu sou”

Rosália Ferreira tem 60 anos e é cuidadora da filha, Liliana Soraia, há 38. “A minha filha nasceu com uma doença rara, uma doença congénita da glicosilação. A idade já pesa não é? Mas só há duas hipóteses: ou encaramos ou não. E temos de tentar, pelo menos”, conta.

Liliana anda em cadeira de rodas porque “a doença afeta todos os órgãos”. Cognitivamente, é também um quadro muito severo, descreve a mãe. “A minha filha basicamente é uma criança no corpo de mulher”, resume Rosália.

Até aos 14 anos, Liliana viveu com o diagnóstico errado – paralisia cerebral. Andaram de médico em médico até a família conhecer o diagnóstico certo. Hoje passa algum tempo fora de casa, mas nem sempre foi assim. “A Liliana vai para um centro de atividades ocupacionais de manhã e volta às 16h, mas continua a passar muito tempo comigo, até porque o sistema imunitário dela é muito débil e passa muitos meses doente: o inverno é mau porque faz frio, o verão é mau porque faz calor”, explica Rosália. Esse foi um dos motivos que a levou a ter de deixar de trabalhar: foi durante 15 anos administrativa, porque “só assim podia descontar”, mas faltava recorrentemente e deixou o trabalho para trás para cuidar da filha.

Liliana nasceu quando tinha 22 anos e foi também para cuidar da filha que Rosália pôs de lado algumas partes da vida que tinha traçado para si. “Quando ela nasceu sonhava ir para a universidade e tinha um projeto de vida, que para mim era muito bonito e que se concretizou nalgumas parte, mas noutras não. Alguns sonhos ficaram para trás, mas tenho tentado caminhar o melhor possível”, conta.

Há seis anos, contudo, conseguiu concretizar um pedaço do sonho “que tinha ficado na gaveta”: licenciou-se em História, ainda que tenha levado mais tempo do que o normal. Tem a ajuda do marido, que trabalha e “governa a casa”. Sabe que, como o caso de Liliana, “há mais ou menos mil casos em todo o mundo”. A sua filha é uma das mais velhas na Europa e, na maioria dos casos, quem é diagnosticado com a doença não sobrevive mais de 17 ou 18 anos.

E quanto aos apoios para estar em casa a cuidar da filha, o diagnóstico não é diferente do de outros cuidadores. “Costumo dizer que sou invisível, o Estado não sabe quem eu sou. Sou invisível porque não há vontade política, só tenho um pequeno apoio pela doença rara de que a minha filha sofre”, lamenta.

Do lado da comunidade médica, sente outros obstáculos: “Os médicos ainda têm dificuldades com as doenças raras, quando vamos a uma consulta não sabem o que ela tem e é preciso explicar”, descreve Rosália, para quem um estatuto de cuidadora informal seria um passo importante. “Seria um avanço na parte humana, porque reconheciam a nossa dignidade enquanto cuidadores informais e reconheciam aquilo que eu estou a fazer, que ninguém reconhece –  às vezes nem a própria família, só aqueles que estão mesmo em nossa casa e assistem”.

Sabe que deixou muito para trás, “não por escolha mas porque tinha de ser”. A outra opção – institucionalizar Liliana – nunca lhe agradou. “Se cuidamos de um filho sem problemas, porque não cuidar de um filho que tem problemas e precisa muito mais de nós?”, questiona. Esta sexta-feira promete estar na escadaria da Assembleia da República a lutar por um estatuto que lhe dê dignidade.  

“Estou a trabalhar sempre a pensar nele, sempre preocupada”

Lurdes Andrade, de 56 anos, vive em Portalegre e cuida do marido com a mesma idade. “O meu marido teve uma dissecção da aorta há nove anos”, uma lesão cardíaca grave que o colocou numa cadeira de rodas. Mas não só: deixou António Andrade “completamente dependente para tudo”, com uma incapacidade avaliada em 95%. Não come sozinho, não faz a barba, não toma banho sozinho, não fala e não anda, mas consegue apesar de tudo comunicar bem através de um tablet.

A vida mudou mesmo de um dia para o outro. António tinha acabado de sair de ao pé da mulher, entrou no carro para ir trabalhar e Lurdes só se lembra de ter sido avisada por um vizinho de que o marido estava no carro a sentir-se mal. Foi a correr e apanhou-o já inconsciente. “Percebi logo que era grave”. Seguiu-se o hospital, tratamentos mas António nunca recuperou totalmente. “Era vendedor de carros e deixou obviamente de trabalhar. Recebe a reforma por invalidez, e eu ainda estou a trabalhar”, conta Lurdes, que tem um pronto a comer onde trabalha sozinha porque a reforma do marido não chega. “Vou ao supermercado, cozinho, sirvo os clientes e ao mesmo tempo trato do meu marido”, explica, algo que só é possível porque trabalha perto de casa. “Estou sempre a pensar como é que ele estará, sempre preocupada. É uma pressão muito grande e é o último ano em que vou estar a trabalhar porque não aguento mais”.

Desde que ficou sozinha a sustentar a casa, várias têm sido as dificuldades. “Quando o meu marido teve o problema, aos 46, a minha filha mais velha estava a entrar na faculdade. Quando ela saiu, entrou a mais nova, que está agora a acabar. Tive de pagar os cursos delas e entretanto tive que vender várias coisas. Tinha uma vida estabilizada e hoje não”, desabafa.

A vida hoje é muito diferente da que tinham antes da doença. Para poder pagar as contas e dependendo só do seu rendimento, tiveram de vender a casa grande com piscina onde viviam e mudar-se para uma mais pequena, porque não conseguiam mantê-la. Lurdes teve de vender várias peças em ouro e outros bens. “O negócio vai dando, mas não para tudo”.

Lurdes teme pelo futuro, mas não consegue continuar com o ritmo dos últimos nove anos. “Não tenho empregados porque não consigo pagar-lhes e corro o dia inteiro para cima e para baixo”. Um esforço que resulta também de nunca ter querido que o seu marido estivesse institucionalizado mas junto da família. Lamenta não ter tido ajuda “de nada, nem de autarquias nem do Estado”, e garante que isso tornou tudo mais difícil. O facto de viverem num meio pequeno também não ajuda: “Cheguei a querer que ele fosse para a piscina aqui, mas os funcionários disseram-me logo que não porque só têm balneário de senhoras ou de homem e eu não podia entrar com ele para nenhum dos dois”.

Lurdes pede uma solução do Estado para ter mais apoios. “É nessa esperança que a gente vive”, conclui.