Carnaval.  “São onze  de cá, onze de lá/ E o bate-bola do meu coração”

Carnaval. “São onze de cá, onze de lá/ E o bate-bola do meu coração”


Por causa de um golo de Arthur Friedenreich ao Uruguai na final da Copa Sul-Americana, Pixinguinha fez um samba chamado “1×0”. E tendo entrado no samba e no sangue dos brasileiros, o futebol não tardou a fazer parte do Carnaval. O povão cantava pela avenida: “Habilidade, tiro cruzado/ Mete a cabeça, toca de lado/ Não…


O escritor brasileiro Otto Lara de Resende gostava de sublinhar as personagens mais caricatas que ia conhecendo: “É uma figura! Uma figura!”

Pois Arthur Friedenreich, nascido em São Paulo em julho de 1892, era uma figura! Pode ser que muitos dos que me leem não ouçam os sinos da memória a bimbalhar nos tímpanos da lembrança quando escrevo este nome tão inequivocamente alemão que remete de imediato para o pai Oscar, imigrante, oriundo de Blumenau e que se instalou no Brasil como funcionário público, trazido por sua vez pelo avô de Arthur, Karl Wilhelm, famoso como veterinário e naturalista. A mãe, Mathilde Moraes e Silva, era negra retinta, daquele tom divino daqueles a quem Nelson Rodrigues chamava príncipes etíopes de Rancho. Friedenreich, ou Fried, ou ainda El Tigre, tornou-se, ao serviço do Paulistano, do São Paulo ou do Flamengo, o grande jogador brasileiro da fase amadora do futebol e, igualmente, a primeira grande vedeta do futebol no Brasil.

“Vai começar o futebol, pois é, / Com muita garra e emoção / São onze de cá, onze de lá / E o bate-bola do meu coração…”

Alfredo da Rocha Vianna Filho também era um dos divinos negros. Mais novo do que Fried: nasceu em abril de 1897, no Rio de Janeiro, filho do músico Alfredo da Rocha Vianna. Em 1912 já atuava nos cabarés da Lapa, zona da malandragem carioca, distinguindo-se como um flautista de enorme talento. Não tardou a conquistar o cargo de flauta titular na orquestra do Cine Rio Branco e a integrar o grupo Caxangá, como os amigos Donga e João Pernambuco. Em 1919 já tinha outro conjunto: Oito Batutas. E popularidade a rodos.

Em 29 de maio de 1919, Arthur Friedenreich vestia a camisola da seleção brasileira que disputava, no Estádio das Laranjeiras, a final da Copa Sul-Americana. Não havia maneira de desamarrar aquele teimoso zero a zero e o público desesperava. Era uma daquelas fases em que a rivalidade entre uruguaios e brasileiros fazia comichões no sangue e punha uns e outros a vomitar fogo pelas ventas. Quase no final do prolongamento, Fried recebeu uma bola e não teve piedade: quase furou as redes da baliza da Celeste. Tornava-se oficialmente a maior estrela do futebol do país. Não havia quem não soubesse quem era Fried.

 

Espanhola

O Carnaval desse ano de 1919 fora muito marcado pelo grande surto de gripe espanhola do ano anterior. A influenza, que os ingleses trataram logo de tratar por flu, matou quase 100 milhões de pessoas por todo o mundo. Trinta e cinco mil brasileiros foram vitimados. A epidemia terminou no fim de 1918. Não admira que, sendo como são, os brasileiros tenham caído na farra dois meses mais tarde, nessa espécie de exorcismo carnavalesco. Carmen Miranda cantou: “Pensei que o mundo ia se acabar/ E fui tratando de me despedir/ E sem demora fui tratando de aproveitar/ Beijei na boca de quem não devia/ Peguei na mão de quem não conhecia/ Dancei um samba em traje de maiô/ E o tal mundo não se acabou… Ih! Vai ter barulho e vai ter confusão/ Porque o mundo não se acabou”.

Nesse tempo não havia ainda hábito de misturar bola com Carnaval. Muito porque o futebol ainda não se tornara profundamente popular, já que submetido essencialmente à influência dos jogadores de raça branca – os de outras raças chegaram mesmo a ser impedidos de participar em provas oficiais –, e não entrara na verdadeira alma do povão.

Friedenreich era mulato. Mas com olhos claros e pele alva. Esticava a carapinha com graxa para parecer ainda mais branquela.

Pixinguinha não ligava a isso. Mas Fried mexeu com ele. Fried e o golo contra o Uruguai. Pegou no violão e foi por aí fora:

“É a bola, é a bola, é a bola,/ É a bola e o gol! / Numa jogada emocionante / O nosso time venceu por um a zero / E a torcida vibrou”

O samba ficou no ouvido das gentes. Pela primeira vez, alguém cantava sobre o jogo inventado pelos ingleses.

“Vamos lembrar / A velha história desse esporte / Começou na Inglaterra / E foi parar no Japão / Habilidade, tiro cruzado, / Mete a cabeça, toca de lado, / Não vale é pegar com a mão”

No Carnaval seguinte, não faltou às alegorias. Mesmo que Pixinguinha avisasse: “Bola vai e volta / Vem brilhando no ar / E se o juiz apita errado / É que a coisa fica feia”.