João Pedroso de Lima.  “As pessoas comportam-se melhor numa biblioteca do que num hospital”

João Pedroso de Lima. “As pessoas comportam-se melhor numa biblioteca do que num hospital”


Hospitais de Coimbra lançaram um projeto de humanização dos cuidados. Um desafio que é ao mesmo tempo uma aposta em todos os profissionais, diz o médico responsável 


Consultas mais centradas nos doentes, com tempo e abertura para os ouvir e menos interrupções. Cortesia no trato. Telemóveis no silêncio. Portas que não rangem, menos berros de uma ponta para a outra do corredor ou conversas paralelas à frente dos doentes. João Pedroso de Lima acredita que mudanças relativamente simples podem tornar mais humano o ambiente que se vive dentro dos hospitais e é esse o mote do projeto que lançou este ano no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), onde fez carreira como especialista em Medicina Nuclear. Já foi responsável por esse serviço, hoje está à frente da Unidade Intermédia de Gestão de Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica do CHUC. Aos 65 anos, encara o projeto H2 – Humanizar os Cuidados como uma missão para os cinco anos que tem até à idade de aposentação. E não se importa de ser o “chato” de serviço: acredita que mudanças como esta levam tempo, mas são essenciais.

Já tinha este projeto em mente há muito tempo?

A razão principal é perceber que o hospital está a precisar, assim como os hospitais todos de uma maneira geral, no serviço público e não só. E precisam de uma vertente de maior humanização dos cuidados por vários motivos. Por um lado porque a medicina está mais tecnológica. Se a tecnologia é muito importante porque nos permite melhorar o diagnóstico e os tratamentos, afasta-nos dos doentes, cria uma barreira. E há gestos que a tecnologia não pode executar: a cortesia, o carinho, a atenção, a compreensão.

Esse desenvolvimento da tecnologia tem sido progressivo. Porquê agora?

Sim, mas é um crescimento exponencial nos últimos anos. E vai continuar a aumentar com o mesmo ritmo – há até quem diga que será superior. Outro obstáculo a cuidados humanos é a própria insustentabilidade financeira dos serviços de saúde, que diminui os recursos, que levou a esta aglutinação de hospitais em grandes centros hospitalares, na tentativa de otimizar custos. Isto acontece cá e lá fora, porque os custos têm estado a aumentar, a população está a envelhecer e as patologias aumentam à medida que a idade vai avançando. Tendo doenças mais frequentes, temos mais custos.

E depois em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão?

E depois é isso também. Começa a haver menos recursos, materiais e humanos, e torna-se difícil manter um ambiente de afetividade em relação ao doente.

Portanto ao assumirem esse projeto, assumem que têm essas dificuldades todas que elencou?

Há essa consciência. Há hospitais que têm serviços estruturados de humanização, por exemplo o S. João, e nós aqui não tínhamos essa resposta. Portanto pensámos nisto porque há este contexto e depois porque há outros indicadores: os doentes estão a reclamar mais e reclamam muito não é pela componente de assistência médica, mas pelas relações que se estabelecem no hospital. Ou seja, protestam sobretudo pela maneira como são tratados na relação que se estabelece com os profissionais.

Costuma ler as reclamações?

Sim. Tenho estado a fazer apresentações do projeto nos serviços e levo um powerpoint. O primeiro slide que apresento tem um elogio que foi feito ao hospital, de um familiar de um doente que morreu com uma situação grave de doença prolongada. Este familiar agradece a maneira como o doente foi tratado e como se estabeleceram relações entre os diferentes serviços e os profissionais e termina com palavras encorajadoras, quer ao hospital quer ao SNS. De seguida apresento extratos de reclamações que fui ver ao gabinete do utente e todas vão muito nesse sentido: “Tratam-me de maneira que não é apropriada”, “há atitudes desumanas”. Ou a queixa de que há imenso barulho e não dá para descansar. Ou de profissionais que não estão preparados, “que gritam connosco”.

Ficou surpreendido quando começou a fazer essa análise?

Fiquei surpreendido com a quantidade: de mês para mês as reclamações vão aumentando e muito nesta área das questões de trato e falta de cuidado, nomeadamente no ruído. Há uma absoluta falta de cuidado na maneira como as pessoas se comportam no hospital. Comportam-se melhor numa biblioteca, num teatro ou no cinema do que num hospital, onde devia haver, por maioria de razão, mais cuidado.

Foi sempre assim?

É pior agora. Há os telemóveis. E depois porque, à medida que o tempo foi passando, nota-se na população um menor cuidado. Parece que estamos mais individualistas e não nos preocupamos tanto com o outro. Isto por um lado, mas também temos um maior número de processos judiciais contra o hospital. E cá dentro temos um maior número de processos disciplinares a funcionários. Vemos que está a aumentar a crispação, há mais burnout, há menos condições de trabalho, os ordenados não são tão estimulantes. Há sinais de frustração e desmotivação. Mas, perante isto, o que me parece é que não pode ser razão para que haja uma desatenção para com o doente, que não tem culpa nenhuma disto. Ver esta realidade deve fazer-nos procurar, de algum modo, uma melhor relação com o doente, uma recompensa para o esforço que é feito diariamente, não é material mas é de satisfação pessoal.

Mas estando as pessoas esgotadas, não é necessário primeiro repor os meios necessários nos hospitais?

Com certeza que é, mas isso tem implicações de natureza financeira e não é tão fácil de obter. Há coisas que podemos fazer no imediato e que não custam dinheiro – começam dentro de nós mesmos. E por isso tenho dito que este programa que estamos a lançar é um desafio para todos mas também é uma aposta em todos nós: é uma mudança de atitude, de cultura, de posicionamento. E para tudo isto é importante que haja um exemplo das chefias. Outro aspeto fundamental, e que será central no nosso projeto, é a formação para comunicação, coisa que nunca tivemos na faculdade. Nem nós médicos nem os outros profissionais. Não temos formação para saber falar com o doente, que nos desperte para as questões da empatia. Portanto este projeto tem duas componentes: promoção da cultura de humanização e garantir formação.

Já começaram essas ações de formação?

Sim, já tivemos uma ação de formação sobre comunicação médico-doente com 15 médicos, vamos ter outra em breve. É dada pelo Instituto de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Basicamente destina-se a perceber como centrar no doente a resposta. Por exemplo, numa entrevista médica, se a atenção for mais focada no doente só haverá vantagens. Cria-se mais empatia, confiança, e isso contribui para que o doente adira mais ao processo terapêutico e pode obter-se mais informações importantes para lidar com aquele caso.

No dia-a-dia, porque é que não há sempre essa preocupação?

Não está na tradição. A nossa medicina tem estado muito centrada no médico, no profissional. Isto está estudado. Numa consulta médica, o doente começa a falar. Em média, o médico interrompe o doente passados 18 segundos, não o deixa falar. Se deixasse falar mais, podia ouvir aspetos que poderiam ajudar no diagnóstico e enquadrar aquilo que o doente tem, não só do ponto de vista biológico mas emocional e socialmente.

O médico interrompe porquê? Porque sabe que tem pouco tempo?

Sim, também há esse aspeto, devia haver mais tempo. A questão é que os hospitais e o próprio financiamento está muito virado para a produção em número de consultas e de atos e não tanto para os resultados e isto acaba por estar tudo ligado. Quando se fala desta tendência de centrar a organização na eficácia e não tanto na quantidade, é esta a preocupação. Porque repare, se não se vai por aqui, até se pode despachar o doente e fazer um determinado tratamento mas daqui a uns dias está cá outra vez. Acredita-se que mudar isto poderá reduzir custos no futuro.

Que tipo de estratégia vão seguir no projeto para chegar a todo o centro hospitalar?

Queremos trabalhar de forma multidisciplinar, com todos os profissionais. Começámos agora a formação com médicos e assistentes técnicos, depois queremos passar para enfermagem, assistentes operacionais, administradores, técnicos de diagnóstico e terapêutica. A estratégia será formar formadores que nos respetivos serviços, sempre com o apoio da psicologia médica, vão em rede passar esta informação aos colegas mais novos. Temos já um conjunto de ações de formação para março, outras virão a seguir. Claro que sabemos que isto não se consegue de um momento para o outro e sabemos que os resultados não vão ser imediatos, mas é preciso persistência.

Mas tem encontrado abertura?

Sim. Termos começado com ações de sensibilização contra o ruído no hospital acabou por ser uma forma de tornar mais visível o projeto, colocámos cartazes. No Dia Mundial do Doente pegámos numa faixa a dizer o “ruído faz mal à saúde” e convocámos uma grande concentração na escada dos auditórios, tivemos cá a senhora ministra. Juntámos 200 pessoas, todas com um cartaz. E o mais incrível foi que as pessoas estavam em silêncio. 

A ministra da Saúde levou a vossa t-shirt com o slogan “Baixinho” ao programa Prós e Contras, o que gerou algumas reações negativas por parte dos enfermeiros por ser um momento de contestação.

Nem imaginei que pudesse ser interpretado dessa maneira, não foi essa a intenção. O que queríamos transmitir é que esta é também uma maneira de defender o SNS, fazer algo em prol de uma melhor relação com o doente e que também favoreça a maneira como nos tratamos uns aos outros dentro dos hospitais, o que não tem propriamente encargos financeiros. Este emoji do baixinho no fundo é a reposição daquela imagem antiga em que a enfermeira pedia silêncio no hospital. Não queremos silêncio, mas se as pessoas puderem falar mais baixo, se desligarem o telemóvel.

Por vezes apanhamos médicos a atender o telefone na consulta sem ser propriamente uma urgência, como também haverá doentes que o fazem. É esse tipo de comportamentos que querem mudar?

Todos o fazem, é uma coisa geral. Nós aqui dentro do hospital temos um serviço onde só é permitido o telemóvel em modo de vibração ou silêncio e funciona. É a regra interna do serviço. Vamos tentar que seja em todo o hospital. Mas em relação a esta componente do ruído, quisemos começar com informação. Com apoio de uma instituição aqui de Coimbra, o Itecons (Instituto de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico para a Construção, Energia, Ambiente e Sustentabilidade) conseguimos fazer algumas análises de acústica. Contratámo-los para virem fazer medições de ruído a uma enfermaria durante vários dias, dia e noite. As conclusões são assustadoras: os níveis de ruído que temos no nosso hospital – e que não são serão únicos neste hospital, mas não são de todo o que se passa noutros hospitais do mundo civilizado – são o dobro daquilo que é recomendado pela Organização Mundial de Saúde. Quer no nível basal, quer nos picos.

O dobro para os hospitais ou para o ambiente sonoro no geral?

O dobro para os hospitais. Os limites são 30 decibéis para ruído basal e 40 para picos de ruído. Nós estamos nos 60 de ruído basal e chegámos aos 100 nos picos.

Os técnicos disseram-vos em que tipo de ambiente se encontra esse nível de barulho?

Numa discoteca, num sítio com música alta. Talvez não numa discoteca enorme, mas num bar. São ruídos com várias causas, mas muitas delas humanas. As pessoas falam alto, falam de uma ponta do corredor para a outra, e por vezes mesmo sendo de noite continuam a fazê-lo. Voltando às reclamações, uma das que li era precisamente de uma pessoa a queixar-se de barulhos, cantorias, gargalhadas à noite quando esteve cá internada.

Dos profissionais?

Sim e a pessoa ali doente. Uma pessoa quando está doente está mais sensível, está mais fragilizada e isso tem de ser respeitado. Além disto, fizemos questão de entrevistar profissionais do hospital que já estiveram cá internados – administradores, médicos, técnicos, enfermeiros. Quisemos que falassem da sua perspetiva enquanto doente, e o facto é que a perspetiva de doente é completamente diferente da perspetiva de profissional. Uma pessoa quando está deitada numa cama doente apercebe-se de coisas a que quando está a trabalhar não dá valor. É todo este esforço de sensibilização que queremos fazer para que as pessoas se ponham na pele do doente. É essa a regra de ouro da humanização: fazer ao outro aquilo que gostaríamos que nos fizessem a nós. Isto é tudo um bocado teórico mas depende muito de nós.

É um projeto a quanto tempo?

No dia 15 de fevereiro fiz 65 anos, portanto tenho mais cinco anos à minha frente aqui no hospital. Estou a encarar isto como uma missão. Claro que há sempre pessoas que desvalorizam, mas estamos cá para isso. 

Um momento de contestação, como tivemos as recentes greves dos enfermeiros mas também dos técnicos, é o ideal para lançar um projeto assim?

O doente não tem culpa nenhuma, não pode ser mal tratado. As pessoas que são verdadeiramente prejudicadas com aquilo que se está a passar na saúde são os doentes e é por isso que as greves não têm tido o apoio geral da população. Com certeza que as pessoas têm o direito à greve, mas quem sofre são os doentes.

Mas quando ouvimos queixas de faltas de enfermeiros e rácios inadequados, um enfermeiro para 30 doentes, pouco tempo para consultas…

Claro que precisamos de melhores rácios, um enfermeiro para 30 camas, uma consulta com 10 minutos… Tudo isto tem de ser alterado, mas isso não quer dizer que paralelamente não precisamos de um processo de melhorar a relação humana para mais carinho, empatia e compaixão. Mais meios podem ajudar a criar condições para isso ser facilitado, mas paralelamente podemos ir avançado nessa vertente, que está esquecida. É sempre momento para pensar naquilo que podemos fazer para melhorar a resposta e temos de começar a pensar nesta vertente. A atividade de um profissional de saúde não pode ser meramente técnica, tem de ter uma componente mais humana, até porque isso é meio caminho andado para a cura.

Isso está medido?

Essa relação de confiança, de ouvir o doente acaba por criar a possibilidade de melhoria da situação que está muito bem documentado.

Além dos tempos de espera, sente que essa falta de humanização e, por vezes, de conforto leva muitas pessoas a procurar o setor privado?

Sem dúvida, mas há problemas destes em ambos os lados. Nas apresentações que faço nos serviços mostro sempre um vídeo sobre a Clevelad Clinic, nos Estados Unidos – basta pesquisar por Cleveland Clinic e empatia que se encontra. Há uns 15 anos, o CEO deste hospital, Toby Cosgrove, foi fazer uma conferência a Harvard e, no final, uma aluna levantou a mão e fez-lhe uma pergunta. Disse-lhe: “A minha mãe precisou de uma cirurgia cardíaca, valvular. Lá em casa sabíamos que a Cleveland Clinic era o melhor sítio nos Estados Unidos para fazer essa cirurgia, mas não vos escolhemos porque os senhores não sabem o que é empatia”. E perguntou-lhe diretamente: “O senhor sabe o que é empatia?” Não conseguiu responder, não estava preparado. Voltou ao hospital, reuniu as pessoas, formou todos os médicos e os profissionais em comunicação com o doente, desenvolveu múltiplas ações e o resultado é aquele vídeo, absolutamente fantástico. Nem é preciso falar, vê-se o que vai na cabeça e no espírito dos profissionais quando estão sensibilizados para isto. 

Dá consigo a observar a cara das pessoas no hospital?

Muitas vezes faço isso. Parece que nos esquecemos disto, faz parte, é humano, mas se, quando estamos perante um doente, nos preocuparmos mais em saber o que ele quer, mais facilmente o compreendemos e podemos ajudá-lo.

Desde que começou a pensar o projeto, mudou alguma coisa na forma como está perante os doentes? 

Reforçou a minha preocupação. Sempre me irritou que, estando doentes presentes, as pessoas falassem sobre problemas seus, e está ali o doente que não tem nada a ver com isso no meio de uma conversa que não lhe diz respeito. Tudo bem, as pessoas têm de ter tempo e espaço para conversar, mas podem fazê-lo na sala ao lado.

E como é visto quando chama alguém à atenção?

O chato, claro. E agora ainda vão achar mais, mas queremos mesmo mudar alguma coisa. Quando uma pessoa sente em consciência que faz o que tem de fazer, é imune a críticas. 

Daqui a cinco anos, o que serão medidas de sucesso?

É um bocado difícil medir, mas vamos ter inquéritos de satisfação que daqui a uns anos vamos poder repetir. Há 14 anos também se fumava em todo o lado no hospital, entretanto a lei mudou mas antes lançámos um projeto para conseguimos mudar isso. Claro que em relação ao tabaco é mais fácil medir a eficácia do que em relação a coisas como o silêncio, mas é insistindo que chegamos lá. Já me está a dar satisfação ter pessoas a vir perguntar à equipa de coordenação como podem aderir. Temos uma assembleia de colaboradores com delegados dos serviços e até já tenho inscrições de fora do hospital.. Só o facto de se falar nisto já é importante e é isso que se pretende com as reuniões que se fazem nos serviços onde habitualmente ouvem falar de ciência e técnica. Vamos ter três ou quatro serviços piloto de combate ao ruído, vamos sugerir ao conselho de administração que elabore para divulgar pelos serviços.

Normas de que género?

Não é inventar a roda, está inventada. Desligar televisões, desligar telemóveis, encontrar duas pessoas ou três que, em cada serviço, estejam mais preocupadas em chamar a atenção quando alguém fala mais alto. Coisas simples: usar calçado menos barulhento. Determinar um período de silêncio entre as oito da noite e as oito da manhã. Há pessoas que trabalham em restaurantes e não podem falar ao telemóvel durante um determinado período. Não digo isso, mas coloque-se o telemóvel no silêncio. E depois há aspetos mais estruturais, o tipo de construção, o bater das portas. Costumamos ter doentes aqui internados em quartos de isolamento com doses elevadíssimas de radioatividade. São pessoas que dormem cá e ficam incomodadíssimas com pequenos barulhos. A minha porta do gabinete chia por todo lado, já pedi para porem um bocadinho de óleo. Às vezes são coisas assim que fazem a diferença.

Acha que pode pegar a outros hospitais?

É provável que sim. Como disse, há outros hospitais onde as coisas estão certamente melhor. Mas é natural que exemplos como este e outros possam servir de motivação para outros hospitais.