Arguido e vítima viviam em união de facto, tiveram um filho em 1985, casaram e desde 2013 até à saída de casa da vítima, o marido consumia bebidas alcoólicas de forma excessiva pelo menos uma vez por semana e o desfecho era, uma e outra vez, o mesmo: um chorrilho de insultos, acusando-a de ser “uma puta, uma vaca, que só tinha amantes, porca e que ela não valia nada” e ameaçando-a de morte. Por vezes, os insultos eram acompanhados de bofetadas na cabeça e nos braços, até que, certo dia, em 2016, o marido rebentou um tímpano à mulher com um murro.
O homem foi condenado por violência doméstica pelos juízes da primeira instância, mas recorreu da decisão no Tribunal da Relação do Porto, que determinou a retirada da pulseira eletrónica ao agressor num acórdão de outubro último assinado pelo juiz Neto de Moura – o mesmo magistrado que já tinha enchido páginas de jornais no fim de 2017, por causa de um acórdão polémico em que defendeu a manutenção da pena suspensa de dois homens que agrediram uma mulher por adultério.
Apesar do julgamento público de que foi alvo, parece que a polémica não surtiu efeitos na visão do juiz: a aplicação da pulseira eletrónica tinha sido decidida pelos juízes de primeira instância com o objetivo de garantir que o homem – que foi condenado a pena suspensa – não voltava a aproximar-se da vítima, como avançou o jornal “Público” na edição desta segunda-feira, mas o juiz pesou os factos de forma diferente.
“Se, durante muito tempo e até há uns anos, a vítima de violência doméstica sentia que o mais provável é que a sua denúncia acabasse em nada […], a verdade é que, nos últimos tempos, se têm acentuado os sinais de uma tendência de sentido contrário, em que a mais banal discussão ou desavença entre marido e mulher é logo considerada violência doméstica e o suposto agressor (geralmente o marido) é diabolizado e nenhum crédito pode ser-lhe reconhecido”, começa por defender o juiz, para passar depois ao caso específico que tem em mãos: “[…] Este caso de maus tratos está longe de ser dos mais graves que surgem nos tribunais. O quadro traçado na acusação está longe, muito longe mesmo, de corresponder à realidade dos factos provados”, considera Neto de Moura no acórdão. E prossegue, explicando: “A única situação, devidamente concretizada, de violência física (aquela que, normalmente, é mais grave e tem consequências mais nefastas) é a ocorrida em Abril ou Maio de 2016, em que o arguido desferiu vários socos em C…, atingindo-a nas diferentes zonas da cabeça, incluindo os ouvidos, provocando-lhe perfuração do tímpano esquerdo, além de edemas, hematomas e escoriações”.
Por isso, conclui o juiz da Relação, “os factos, apreciados na sua globalidade, não revelam uma carga de ilicitude particularmente acentuada, confinando-se àquilo que é a situação mais comum no quadro geral da violência doméstica”. Justificando que os juízes que proferiram a pena do arguido não lhe pediram a autorização necessária prevista na lei, e que a decisão de aplicar pulseira eletrónica “não está, minimamente, fundamentada”, entendeu Neto de Moura “revogar a decisão de utilização de meios técnicos de controlo à distância na fiscalização do cumprimento dessa pena acessória”.
Além dessa decisão, apesar de reconhecer o natural receio da vítima, “várias vezes ameaçada de morte pelo arguido”, o juiz decide também reduzir a duração da pena acessória de proibição de contactos com a vítima para um ano. “O que não está, de todo, justificado na sentença recorrida é o (longo) período fixado para essa proibição”, argumenta.
A sanção e o acórdão da bíblia
Este mês, o juiz já tinha sido noticiado pela sanção de que foi alvo pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM) devido ao acórdão que o tornou conhecido do grande público, datado de outubro de 2017. No documento referido, o juiz determinou a manutenção da pena suspensa de dois homens que agrediram uma mulher que tinha sido casada com um deles e manteve uma relação extraconjugal com outro. Para justificar a decisão, Neto de Moura recorreu a passagens da Bíblia e do Código Penal de 1886. Na argumentação mencionou ainda exemplos de civilizações que usam a pena de morte como condenação para o adultério.
Ano negro na violência doméstica
Desde janeiro, já morreram 11 mulheres em contexto de violência doméstica. O número ganha contornos mais graves se se atender que em 2018, no total, 24 mulheres foram mortas às mãos dos companheiros, antigos companheiros ou outros familiares. Da lista faz parte uma criança.
Ao i, Elisabete Brasil, do Observatório de Mulheres Assassinadas da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), reagiu recentemente aos números, defendendo “que as estratégias de prevenção que estão a ser equacionadas para o femicídio global não são as adequadas, uma vez que tem uma caracterização distinta do homicídio e precisa de um combate que parece estar a conseguir resultados positivos no âmbito do homicídio, mas o femicídio não está a ter nenhuma diminuição. Portugal não é eficaz nem a prevenir o fenómeno, nem a apoiar as mulheres”.
De resto, este ano, a lista dos homens vítimas de violência doméstica também já não está a zeros: um homem foi morto pelo companheiro.