No seguimento da conferência “A Crise da Democracia” do sociólogo Boaventura Sousa Santos (BSS), na semana passada em Minas Gerais (Brasil), sugere-se a leitura do texto em que BSS aborda o que designa por “fábricas de produção do ódio, do medo e da mentira (…): na fábrica do ódio produz-se a necessidade de criar inimigos e de produzir as armas que os eliminem eficazmente (…); na fábrica do medo produz-se a insegurança e os artefactos ideológico-mentais que produzem a segurança (…); na fábrica da mentira produzem-se os factos e as ideias alternativas a tudo o que tem passado por verdade ou busca de verdade (…)”*. Embora aqui exposta muito sucintamente, a tese de BSS reconduz-nos à tralha ideológica dos cultores dos “ismos” que por aí grassam e nos desgraçam: populismo, racismo, xenofobismo, sexismo, autoritarismo… O mundo e o tempo actuais, perigosos, tolhidos diante das ameaças à democracia, à captura da política pela finança.
Mergulhar nestes pensamentos causa uma gastura! Há que arrepiar caminho e… louvado seja o aconchego! E aconchego há que baste nas Terras do Barroso, meus senhores! Estrada fora, serra do Barroso adentro, o ar rarefeito de sempre, que limpa brônquios, os ruídos do silêncio envolvendo a gente, vozes ao longe, entrecortadas, latidos, cacarejos, mugidos a rolarem nas curvas dos montes, e eis senão quando, numa subida, a aldeia de Alturas do Barroso à vista.
Chegados à aldeia, primeiro toma- -nos o pasmo nas ruelas empedradas salpicadas de bosta, nas casas térreas de granito com portas de madeira, baixinhas, e janelitas entaipadas, tudo a resumir idade – também se vêem construções mais recentes, de dois pisos, poucas, mais desinteressantes. Depois, já refeitos, vamos à cata do famoso restaurante Casa do Ferrador, que leva à terra hordas de comensais vindos de longe. A casa, num pequeno largo atravancado com um tanque de pedra e uma grossa torneira gotejante, destaca-se pela frontaria. Em entrando, pega-nos a sensação de recuo no tempo, amparada pela vetustez das pedras e das grossas traves de madeira, enegrecidas, que compõem o tecto. É uma rusticidade singela tão genuína quanto a lenha crepitante na lareira, a irradiar calor e a fumarar os enchidos alinhados num estendal pendurado do tecto. E o cheiro inconfundível do fumeiro a incensar o ambiente. À chegada, o dono da casa aproxima-se, a bonomia estampada nas rugas e nos olhos azuis buliçosos, e, pressentindo-nos o entusiasmo, mete conversa: que a casa foi construída nos idos de 1800, sempre na mão da família; de como surgiu o restaurante – o sustento e o futuro dos filhos, diz; que é quem, ainda, trata dos animais, porque gosta, e assim foi criado. Na mesa, cada entrada servida é uma surpresa que antecede o cozido, soberbo na opulência das carnes, de criação própria, acompanhado com arroz de feijão (!?). Um dia, alguém lhe chamou “o melhor cozido do mundo”. Há que provar para crer.
Findo o repasto, mais umas voltas pela aldeia, e um pulo à capela de Santo Isidro, encarrapitada no Alto da Pena Franga, cujo adro é um imperdível miradouro sobre a magnífica paisagem, emoldurada pelas imponentes serranias em redor.
Foi-se a gastura. Tirámos a barriga de misérias, em todos os sentidos!
* www.as-incessantes-fabricas-do-odio-do-medo-e-da-mentira
Gestora
Escreve quinzenalmente, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990