Nadav Lapid. “Não vivo em paz com a minha identidade  – mas quem vive?”

Nadav Lapid. “Não vivo em paz com a minha identidade – mas quem vive?”


“Synonymes”, do israelita Nadav Lapid, foi o vencedor do Urso de Ouro no 69.º Festival de Cinema de Berlim, que terminou no domingo. Na véspera, o realizador conversou com o i sobre este filme que foi rodar à cidade para onde há 20 anos fugiu, tentando escapar à sua identidade


Méchant, obscène, ignorant, hideux, vieux, sordide, grossier, abominable, fétide, lamentable, répugnant, détestable, abruti, etriqué, bas d’esprit, e aqui não importará certamente traduzir as palavras que Yoav há de percorrer para chegar ao título do último filme do israelita Nadav Lapid: “Synonymes”. Uma produção entre Israel, França e a Alemanha que saiu com o Urso de Ouro deste 69.o Festival de Cinema de Berlim, que chegou no domingo à última edição dirigida por Dieter Kosslick.

Traduzi-los não importa porque importa descobri-los como os descobre Yoav (Tom Mercier) quando chega a Paris e os descobre e repete pelo prazer de os descobrir, de os repetir, de os continuar, de os prolongar, em listas, enquanto caminha, olhos postos no chão, pelos passeios da cidade. Como fez um dia Nadav Lapid: o realizador aos 20 e poucos anos, chegado a Paris, fugido de Israel e da sua identidade. “De um dia para o outro, como uma Joana d’Arc, decidi deixar Israel e nunca mais voltar. Dez dias depois aterrei no Charles de Gaulle decidido a nunca mais falar hebraico.” Mal falando francês mas querendo ser enterrado no Père Lachaise. Traduzi-los não importa; importa perceber se um país poderá ser todos eles de uma vez, ao mesmo tempo. Para Yoav, pode. Israel pode, tanto que acredita que há de morrer antes de si.

Yoav era já o nome da criança que dizia poemas em “A Educadora do Jardim de Infância” (de 2014, ao qual Sara Colangelo regressou no ano passado para uma adaptação à realidade americana, protagonizada por Maggie Gyllenhaal) e que, numa obra que não esconde o seu caráter autobiográfico, é o nome a que regressa sempre que um personagem tiver algo de si. Neste caso, tudo ou, pelo menos, tudo o que importa. “A decisão de Yoav pode parecer demasiado radical, e é radical, mas acho que se seguirmos a sua lógica, que é a lógica que segui há quase 20 anos, quando deixei Israel com a intenção de nunca mais voltar, faz sentido: se ele continuasse a falar hebraico era como se Israel estivesse sempre consigo”, contou ao i em Berlim, na véspera de ter recebido o Urso de Ouro das mãos de Juliette Binoche, presidente do júri nesta edição que foi a última de Dieter Kosslick, diretor do festival ao longo das últimas 18 edições. “Como se carregasse Israel. Como se, a cada palavra em hebraico, se tornasse mais difícil completar o corte. Yoav foge de Israel como se fosse o pior demónio e, para ele, o hebraico é o som, a música dos demónios.”

Mas a linguagem será só uma etapa final para Yoav, que Lapid compara a uma espécie de “Cândido” de Voltaire (“do pior lugar possível para o lugar mais perfeito de sempre” para depois descobrir que a realidade não será tão a preto-e-branco como a imaginava), que no início de “Synonymes” aparece nu, morrendo de frio, quase arrancando a própria pele antes de perder os sentidos e ser salvo por Emile (Quentin Dolmaire), um desconhecido que se transformará no seu melhor amigo – paralelo para o amigo que em Paris fez Nadav Lapid descobrir o cinema, que o levaria mais tarde de volta a Israel.

“A França, a França… Isso é ridículo”, dir-lhe-á. “Conheces o quê?; “A Céline Dion.” Ou Napoleão Bonaparte, o ídolo com que Lapid aterrou em Paris naquele tempo em que não se tinha dado conta do que nos diz hoje, sobre a universalidade que pode ter a sua história, sobre a universalidade de tudo: “Se quisermos falar na linguagem do filme, feitas as contas, todos os países do mundo são em parte sinónimos uns dos outros. Talvez França e Israel sejam sinónimos distantes.” E voltamos a Yoav, que descobre França através da linguagem, “a linguagem como uma espécie de concerto de Bach”, mas há de descobrir também isso mesmo: que também a Marselhesa pode ser gritada como se o tempo de soldado fosse ainda presente, não passado. “A violência não é um tabu exclusivo de Israel. Também há uma violência francesa, que é diferente, talvez mais subtil, talvez mais perigosa também, por estar velada.”

Da impactante cena de quase morte inicial irá Yoav percorrer o caminho da frustração, degrau a degrau, da impossibilidade de cumprir o objetivo com que chega a Paris – que o realizador admite não ter sido também ele capaz de cumprir até hoje. “À parte os problemas dos dois países, ele acabará por dar sempre consigo diante de um par de portas fechadas. Vejo-o como uma espécie de sem-abrigo do mundo. Não será nunca capaz de encontrar uma identidade que lhe sirva inteiramente. Porque é claro que quando entra em guerra contra Israel está a entrar numa guerra contra ele próprio. Não acho que seja possível libertarmo–nos totalmente. Ele pode até fugir de Israel, mas nunca poderá fugir dele próprio.”

Dirá depois o realizador que, 20 anos depois desse momento em que aterrou em Paris, foi na rodagem de “Synonymes” que experimentou pela primeira vez um sentimento de “harmonia” em Paris. “Porque, pela primeira vez, estive em Paris sem estar nesta tentativa de me tornar francês. Ser israelita em França pode ser ok – não só ok, mas 10 mil vezes melhor do que ser um israelita em Israel hoje em dia. Ainda assim, vivo em Telavive… Não vivo em paz com a minha identidade – mas quem vive?”

E daqui iremos dar à cena final, mais uma dessas que se fazem maiores do que os filmes, dessas a que já o realizador que não precisava deste Urso de Ouro para ter direito a um lugar entre os mais promissores cineastas da sua geração nos habituou desde a sua primeira longa-metragem, “O Polícia” (2011).

O final de “Synonymes” é Yoav no mesmo prédio, diante da casa de Emile, que o salvou, de portas fechadas. “Chega, diz o que tem a dizer, diz tudo, vai-se embora e o filme poderia ter terminado aí, numa porta fechada.” Mas não. Yoav volta atrás, para rebentar com a porta. À procura de uma entrada – uma saída – pela violência que não conseguirá expurgar. “Começa a atirar-se contra a porta, e fá-lo outra e outra e outra vez, e continua quando a imagem já desapareceu, como se pudéssemos dizer que continua a fazê-lo até agora.”

Nas nossas cabeças continuará por horas, por dias, nesse lugar a que vai dar sempre o cinema de Nadav Lapid: “Quando decidimos bater com a cabeça numa parede, o que acontece é que a cabeça se parte antes da parede. É uma ação desesperada, mas a capacidade de ser ativamente desesperado é um sinal de força também. De coragem.”