Duas décadas depois de ter despontado o primeiro, está até difícil imaginar que podia ter dado outra coisa. Muito longe da caricatura em que se transformou, antes de qualquer rumor, foi só um encontro de escritores. Discreto, sem a pompa ou a enfatuação a que hoje tresanda, e não havia um palco de luxo, nem pretensões de grande acontecimento cultural. Então, no ano 2000, quando teve lugar na Póvoa de Varzim o primeiro Correntes D’Escritas, ninguém poderia supor que estivesse ali o germe de um modelo que viria a tornar-se dominante. Numa lógica que parece hoje favorecida por uma distorcida lei da gravidade (leia-se: interesses vários, as filas para se coçar o ego, conivências macacas).
O festival, ou a feira do livro que se faz acompanhar de uma programação um tanto à balda, parece configurar-se como a única maneira de superar o geral desinteresse pelo livro. Mas do mesmo modo que se pode falar no triunfo deste modelo, podemos ler mais fundo, interpretar as evidências de um tremendo fracasso. Basta notar como o festival literário deu lugar a uma espécie de franchise, fácil de replicar e transplantar, deixando à vista a inconsequência do lugar, dos participantes ou até dos temas. A geral irrelevância dos propósitos ou da orientação. E se não são as ideias o que fica, se os tantos estímulos não ampararam a crise do sector do livro, assiste-se a uma tentação expansionista, um desejo não apenas de se perpetuar mas, porque não tem fins culturais, de crescer ficando sujeito a uma forma de obesidade mórbida. Ocupar mais dias do calendário, mais espaços na cidade, causar mais estardalhaço, ser considerado o maior do país, da península ibérica, da Europa, do mundo… Mas este gigantismo o que nos diz sobre a identidade de um projecto cultural? Com toda esta abrangência, qual é a sua mensagem? E não chegou a altura de se questionar este percurso, o próprio modelo do festival literário?
Talvez o receio maior dos seus promotores seja esse: o de se confrontarem com a inexpressão de um evento que abarca e integra tudo, e, nisto, vai sempre elidindo o seu contorno, ao ponto do vazio, da efemeridade e da repetição serem os seus traços definitivos. Enquanto isso, a única coisa que os festivais literários se têm mostrado incapazes de acolher é a autocrítica, defendendo-se, como todos os organismos decadentes, convidando apenas os seus descocados partidários, os profissionais da exaltação e da demagogia barata. Fecham-se na sua arrogância, como quem aumentasse o volume, produzisse mais ruído para abafar as críticas. Assim, encerram-se numa encenação labirítinca, patética, num constante autoelogio, e que, curiosamente, ao fim de duas décadas, não se traduziu em nada de concreto.
Ano após ano, chega a temporada dos festivais, estes multiplicam-se como reflexos de um espelho quebrado, os sinais de estertor de um organismo moribundo. Toda a efervescência é apenas espuma que fica do abate de horizontes, e se são espectáculos que vivem de um abandalhamento daquilo que se entende por manifestação cultural, a sua retórica imbecil e fossilizada tornou-se já "tão comum que pouco se nota; ou: tão comum que já se torna perigoso alguém notá-lo”.
Se há 20 anos, na Póvoa de Varzim, surgia algo com o candor da indefinição, a potência do que não reconhece ainda um protocolo e que pode, por isso, acidentar-se, conduzir ao inesperado, hoje, levanta-se uma pedra, e lá está outro encontro de escritores, perde-se uma saída na autoestrada e, virando na seguinte, dá-se com um arrevesado povoado que, não tendo mais que uma papelaria, ou só a pouco imaginosa selecção de uma bomba de gasolina, também já organiza o seu festival literário, quantas vezes entre a feira do artesanato e a dos enchidos.
Acontece que o festival literário, como é pensado e posto em prática por cá, não configura mais que outro dispositivo populista, salpicando o mapa de fóruns onde, com os valores literários e a cultura como pretexto, se oficializa e patrocina alargadas conversas de café. Os supostos debates ou encontros literários, mais não são do que os pensos rápidos para a gangrena da vida pública nas cidades modernas. E se esses lugares têm direito a existir, se as autarquias devem dotar as populações de alternativas ao isolamento domiciliar, não se percebe porque a literatura é usada como desculpa, para fingir que se promovem valores de cultura, quando tudo não passa de um estimável projecto de re-socializar as populações.
É fácil, no entanto, explicar porque se recorre aos escritores. Essa classe desprestigiada, que hoje dificilmente mobiliza públicos, degenerou na figura do insatisfeito literato, esses que vivem na fila para os programas de excursão pagos, desejando qualquer forma de protagonismo, e que vão onde for preciso mesmo sem serem pagos para isso. Afinal, se o escritor não tem um sindicato que lute em nome dos seus direitos, pelo menos ainda vai contando com essa forma de subsídio à vaidadezinha que passa pelas reuniões afectivas com um público pronto a identificar-se seja com quem for. Mas preocupante é o facto de estes festivais produzirem tantos equívocos à volta da literatura, traficando, sob a sua capa, todo o tipo de ideias feitas, vícios mentais, juízos apressados, inócuos, tantas vezes imbecis, e que estão mais próximos daqueles que são formulados pelos papagaios da opinião que colonizaram os jornais e preenchem os buracos da programação televisiva.
É natural, diante disto, que ao falar-se em festivais literários se pense num género de cerimonial que convida à vulgaridade, a um recuo da razão face à largada das emoções, e aos modelos de adesão e exaltação afectiva – o que, de resto, justifica inteiramente que o presidente Marcelo compareça nesta edição, como já fez no passado, e não só dê a sua bênção aos festivaleiros, mas cumpra o seu papel enquanto oficiante da missa inaugural, como o vigário desta balofa ideia de cultura que tudo integra, tudo aplana, num ecumenismo pacificador das relações sentidas como antagonistas, para dar lugar a uma paixão impotente, a uma harmonia frouxa.
Tudo isto ilustra bem a erosão do campo cultural, das tensões e conflitos que lhe são próprias, desses contrastes que a tornam pregnante, necessários aos balanços da criatividade e à inflexão crítica que dá forma ao pensamento. Estes “eventos” mais não são do que cerimónias vazias, uma liturgia pindérica em que é festejado o sentido de pertença a uma comunidade que deposita a sua fé na ilusão de que a exposição mediática possa resgatá-la a este "tempo detergente". É uma ideia de cultura enfeudada ao poder, que desistiu de exercer uma influência transformadora da sociedade e que se resignou a servir os desígnios da propaganda do Estado, numa aliança difusa com as indústrias culturais. Deste arranjo só poderia resultar um formato estéril, que precisa eternizar-se, repetir-se todos os anos, celebrar aniversários, pois a longevidade é o seu único sinal de vida.
Incapaz de fazer vingar um laboratório audaz de ideias, um espaço livre de reflexão e mediação, os festivais duram pelo tempo que duram, apenas uns dias e depois tudo se esfuma. O que fica é uma sensação de formigueiro, de aturdimento. Como miragens, contentam-se com os ecos imediatos que produzem. Os públicos para que apelam e os públicos que ajudam a formar não estão ligados em torno de um fenómeno de irradiação literária, mas do desejo de integrar uma comunidade refeita, mesmo que à custa dos livros. No fundo, muitos até prefeririam que nem se falasse tanto de livros; chegam pela promessa de convívio e festa, uma ânsia de agregação, e estão ainda mobilizados pelos modos de entretenimento mediáticos. Aceitariam de igual modo integrar uma audiência televisiva partilhando a mesma sala, intervindo no programa da manhã. Estão sob a influência do feitiço mediático e da cultura de massas, ainda que se apropriem de posturas minoritárias, se arrepiem diante das previsões de catástrofe e decadência que enfrenta o sector do livro. Animam-se por se sentirem membros de uma classe ameaçada, a dos leitores, mas, no fundo, estão ali apenas para assegurar as suas posições maioritárias, roubando tempo aos livros. Os livros que exigem silêncio, solidão, uma forma de atenção que é, já de si, um modo de resistência face a um tempo em que a produtividade se impõe e nos condena a existências que nunca chegam a fortificar uma identidade reclamando para isso horas de ócio.
Ao invés de espaços intelectualmente desafiantes, os festivais literários ajudam a tornar-nos impermeáveis aos estímulos que nos convidam a um certo recolhimento, a um movimento interior mais exigente, que não se detém diante da dificuldade, mas se encanta, gosta do atrito que encontra na verdadeira literatura. Nestes certames, as virtudes literárias são neutralizadas, e só contribuem para nos tornar mais estúpidos, provocando "o curto-circuito das tentativas da nossa inteligência inventiva e condenando-nos ao ventriloquismo dos clichés que nos atravessam”. Não são, por isso, organizados em nome de um público leitor, mas de um público que prescinde do tempo que podia dedicar a um bom livro, para estar num auditório a perder tempo com a tagarelice de uns escritores que mudam de pele e se propõem como entertainers de segunda. Isto diz-nos que estes eventos não dizem respeito ao literário, mas apenas permitem percepcionar o que se passa com os membros de uma comunidade perfeitamente integrada nas formas de cativar a atenção em oposição à da literatura.