A semana em que a Póvoa de Varzim é a manjedoura das letras

A semana em que a Póvoa de Varzim é a manjedoura das letras


O maior e mais antigo festival literário português está ainda maior para a sua 20.ª edição, e no topo de um bolo com mais de 140 autores de expressão ibérica tem direito até a Marcelo


No princípio era o Verbo, e até custa a acreditar como Deus aguentou toda a Criação num tédio fastidioso, vivendo em antecipação ao longo de milénios. Mesmo o Homem, esteve uma porrada de séculos com pouco mais que fazer nas horas de ócio além de coçar-se, e sem nada melhor com que se entreter no escuro, não havendo com quem acasalar, do que ficar de roda da fogueira a aborrecer-se com as mesmas histórias de um soba meio chalupa.

Já ao nível dos dotes criativos exercitados em solidão, não tinha com que se ocupar senão com garatujas na parede das cavernas; sacar de memória o contorno das presas que mais o punham a salivar, crivar-lhes a forma como quem insiste numa prece e afia uma flecha, sonhando apanhá-las e calar as queixas do estômago, para colorir o desenho, no dia seguinte, com o próprio sangue dos bichos, já de barriga cheia.

Longas eras se porfiou nas trevas até, finalmente, nos libertarmos da severidade disciplinadora da natureza. Mas valeu bem a pena, e fomos finalmente salvos pelas plataformas multimédia. Assim, e para nos desforrarmos, hoje há entretenimento 24/7.

Não é, pois, preciso explicar a ninguém as vantagens de não perder mais tempo com o mundo como este foi nas eras mais aborrecidas para, fazendo flashforward, virmos à boca de cena do século XXI, ver o que se arranjou em lugar de se ficar de castigo à roda da fogueira, esticando essa ténue linha que serviu para coser até hoje a tradição literária (e não esqueçamos que, muito antes de passar pelos livros, esta descendeu de uma longa e relentada tradição oral). Assim, num salto destemido, damos por nós, já no ano 2000, quando Francisco Guedes viu realizado o sonho de importar para Portugal o modelo francês dos festivais literários. E fê-lo depois de ter encontrado no vereador da cultura da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, Luís Diamantino, um enérgico parceiro e timoneiro para o projecto.

A primeira edição, bastante discreta, parece um remoto acontecimento remetido para a pré-história, naquela zona ingénua em que ninguém podia sonhar como este festival literário viria a crescer, e passaria de um público de 70 pessoas (no total) para sessões à pinha, com mais de 700 pessoas na assistência, e com um programa que se estende por quase duas semanas, contando com bem mais de uma centena de participantes. Era difícil antever o sucesso que o Correntes d’Escritas viria a ter e como, à sua sombra, nas duas décadas seguintes, se multiplicariam estes encontros de escritores, registando-se hoje cerca de 30 espalhados pelo país, e até em cidades como a Lourinhã, onde como já foi notado não existe uma livraria, mas que nem por isso quis ficar atrás das outras no que toca a esta sopa da pedra cultural (em que o livro, naturalmente, faz de pedra).

A edição deste ano começou no sábado, com as acções de rua da praxe, os diseurs de poesia a concorrer no mercado e, quem sabe, no timbre com as peixeiras, e vai prolongar-se até dia 27. Será a maior de sempre e terá o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a presidir à cerimónia de abertura, amanhã, às 11h30, no Casino da Póvoa. Já a conferência de abertura, às 15h, estará desta vez a cargo de Jorge Carlos Fonseca, presidente da República de Cabo Verde e actual responsável máximo da CPLP, além de escritor. “As letras da língua e a mobilidade dos criadores na CPLP” é o tema da prelecção. E, no mesmo dia, será anunciado o vencedor do Prémio Literário Casino da Póvoa, que distinguirá um livro de poesia, como é habitual nos anos ímpares (ver nota no fim do texto).

De uma modesta iniciativa, com uma programação equilibrada para esse grande banzé que lhe permitiu reclamar o título de o maior festival do país, não foi propriamente a fasquia do ponto de vista literário o que se elevou, mas a aposta na fanfarra – com o orçamento para este ano a chegar aos 150 mil euros (entre verbas camarárias e apoios de parceiros, incluindo do Casino da Póvoa), sendo que nas últimas edições o evento se realizara por menos de metade desse valor –, investindo numa oferta multimédia, que abrange concertos, projecção de filmes, mostras e exposições. Um diluviano programa que pode ser consultado no site da autarquia.

“Não haverá um único momento de pausa”, garantia Luís Diamantino ao “Jornal de Letras”. O vereador da cultura e vice-presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, responsável pelas Correntes d’Escritas, chega a ser uma figura central da cultura portuguesa uma semana por ano.

E naquela que é a vigésima edição, qual é o foco deste Encontro de Escritores de Expressão Ibérica? “Queremos celebrar a forma como temos marcado a Cultura em Portugal, ao ponto de se poder falar noutro ‘aC’ e ‘dC’: antes e depois das Correntes”, diz Diamantino.

Tão empenhado em enaltecer o festival – “Celebrar uma ‘história’ de sucesso”, é o indicativo título do artigo do "JL" –, o jornalista nem pondera se não será má ideia arrancar logo com uma torpitude destas. Limita-se a reproduzir, como se anuindo. E se esta delirante noção, de tão comum no discurso político, poderá passar por um dito espirituoso, é outro chuto nas persistentes ilusões de que o tal festival literário – onde não há um momento de pausa! – pode compaginar-se com o ideal de “paciência e inquietação” da literatura.

Vale a pena notar, como fez o ensaísta espanhol José Luis Pardo num artigo recente na revista “Electra”, que a leitura tem de ser pensada como “muito mais que um entretenimento privado ou uma transacção comercial", como “um processo de formação inseparável do projecto de uma sociedade esclarecida”. É um movimento que, face à vertigem acelaradora a que este tempo nos sujeita, se lhe contrapõe, ansiando por um regresso à terra áspera, por um modo de andar que se enche de gosto pelo atrito. Qual é então o tema central, a lógica à volta da qual se estruturou o programa desta edição do festival? “Fazer a síntese e abrir novos caminhos”, diz-nos Luís Ricardo Duarte, que aqui e ali larga a pele do jornalista e parece falar pela organização do festival, tomando a pele de mais um porta-voz.

Luis Sepúlveda, autor de “O Velho que Lia Romances de Amor”, um festivaleiro de craveira internacional, e alguém ligado ao Correntes d’Escritas desde as suas origens, garante que se trata de um dos melhores festivais literários que se fazem na Europa, e explica que isso se deve a “uma atmosfera de reunião de amigos, longe da formalidade académica, pelo que, quando um escritor fala, sabe que o faz entre amigos”.

Neste mesmo espírito, o “JL” antecipava um “Dicionário de afectos”, iniciativa em que alguns dos mais de 600 autores que passaram pelas vinte edições do festival foram convidados pela organização a escolher a palavra que mais associam ao evento, oferecendo em seguida a sua definição. E é curioso notar como tão depressa os autores, alguns até estimáveis, se deixam agenciar para campanhas de propaganda, e se mostram competentes tarefeiros no marketing.

Nada melhor do que servir alguns exemplos. Mário de Carvalho escolheu a palavra “alvoroço”, e diz-nos que, durante vinte anos, esta “jubilosa iniciativa, crescendo de fluxo em fluxo, de tema em tema, de livro em livro, de autor em autor acabaria por constituir um dos mais importantes e animados pontos de convergência dos autores portugueses uns com os outros”.

Melhor ainda são as analogias que Maria do Rosário Pedreira rouba ao dicionário e à palavra “corrente”, para nos dar um retrato involuntariamente sardónico do festival: “1 Conjunto de elos que liga e prende. 2 Matéria que flui. 3 Movimento que arrasta. 4 Fluxo de carga eléctrica. 5. Escola de pensamento. 6 Facção ou tendência seguida pela maioria. 7 O que se desenrola na actualidade.” E termina com a sua própria definição do festival: “Correntes d’Escritas – tudo o que antecede e muito mais. Fig. Agência de casamentos entre gente das letras.”

Por sua vez, seu esposo, Manuel Alberto Valente, director editorial da Porto Editora, prefere recorrer a esse grande refrão da nossa lírica, a palavra “mar”, e começa por nos dizer que o mar é o que vê da varanda do quarto de hotel onde regressa há 20 anos. Depois, o mar metaforiza-se de forma banal, e já é o mar de gente, o mar de amigos, e, claro, o mar do amor. No fim da sua definição, ainda há tempo para péssima poesia: “Correntes d’Escritas, correntes de memórias. E o mar, sempre o mar, como se continuasse a ser o nosso destino e o nosso verdadeiro rosto.”

Mas sempre que se junta poesia e festival o que não podia faltar era Filipa Leal, poeta que escolheu como palavra essa irritante sigla cibernética: “LOL" e eis a definição que lhe empresta: "(substantivo feminino, masculino, e tudo). Linguagem obscenamente livre, falada há 20 anos na Póvoa de Varzim; usada até em casos agudos de tradução de sonetos de Camões para gíria contemporânea dos lols e dos wtfs.”

E é assim, neste desfilar de comoções, que podemos contar com os autores do festival para nos darem uma ideia do vale tudo desta cultura que se vai firmando no imperativo de atrair vastas audiências, vergando, pelo caminho, a literatura à lógica dos afectos e à gíria pirosa. 
 


 

PRÉMIO CORRENTES D'ESCRITAS 2019

“Um deserto de sornice mental”
Um erro frequente quando cá pelo burgo se atribuem prémios literários é fixar a atenção primeiramente nas listas de premiados ou finalistas. Com o anúncio do veredicto do prémio Correntes d’Escritas para amanhã, distinção que nos anos ímpares recai sobre um título de poesia editado nos dois anos anteriores, vale a pena recolher uma amostra das águas para análise. Ao invés das 12 (doze!) obras finalistas – sete publicadas pela Assírio & Alvim, quatro pela Abysmo e uma com o selo da Tinta da China – atente-se na composição do júri: Almeida Faria, Ana Paula Tavares, José António Gomes, Maria Quintans e Marta Bernardes. No período de 2017-2018, que andou esta grupeta a fazer em termos de trabalhos preparatórios – que críticas, que textos de recepção? Que provas deram enquanto leitores atentos da poesia actual para virem ajuizar o que de melhor se publicou nos últimos dois anos? E como se reduz o tão polarizado mapa da edição da poesia a três chancelas? Será por terem em comum funcionarem as três sobre um mesmo carrossel institucional? E não tem graça ver no júri Maria Quintans, que acaba de se estrear no catálogo da Assírio & Alvim (o que em tempos era, já de si, um feito assinalável) com um livro – “Se me empurrares eu vou” – que, poeticamente, é uma fraude, uma nulidade que assusta. Vão 20 mil euros para o vencedor. Parabéns! Faz sentido que um prémio patrocinado por um casino funcione de modo algo semelhante à roleta.
 

Agora, uma entrada para um dicionário não afectivo do fenómeno:

Festival literário (subst. masc.) 1. Na receita portuguesa, caldeirada que levou duas décadas a apurar e hoje toda a gente repete. 2. Franchise de sucesso com regras fixas de preparação: liga-se para a agência “letras & tretas”, manda-se desembarcar a trupe literata, bate-se-lhes o ego em claras, paga-se a excursão, hotel, enche-se-lhes o bandulho, organiza-se umas patuscadas; quanto à programação, não há grandes exigências. Mas bota aí que vêm às centenas. O público aparece, é a função dele. Passam um bocado, aturam-nos, voltam para casa incólumes. Ainda se poupa na conta da luz. O vereador da cultura tira umas selfies com os artistas, as editoras abifam umas massas, geralmente coisa pouca, e a literatura bem precisa de espairecer. Em termos de valores de produção, do espectáculo, o livro está tão chatinho. Capricha é no aparato, cartazes a acenar à geral boa vontade, o difuso amor pela livralhada. Revê a lista de convidados, os dos jornais. Esse não, que é maluco: diz mal. Esse é óptimo, acha tudo excelente. E para vender a coisa? Anota aí que isto aproxima os criadores do público. Espevita o turismo, dá boa imagem da região. Confirmámos o Marcelo? Ah bom, então está no papo.