ADSE. Concorrência poderá vir a investigar grupos que ameaçam rutura

ADSE. Concorrência poderá vir a investigar grupos que ameaçam rutura


As intenções de suspender as convenções celebradas com o subsistema de saúde foram anunciadas em catadupa. Uma situação que, aos olhos da Concorrência, poderá ser vista como um caso de cartel. 


A Autoridade da Concorrência (AdC) poderá vir a investigar o comportamento dos grandes hospitalares que entraram em rutura com a ADSE. Contactada pelo i, a entidade liderada por Margarida Matos Rosa disse apenas que “neste momento é prematuro a AdC pronunciar-se sobre este assunto”. Mas a verdade é que uma das suas áreas de intervenção é a investigação de práticas de cartel, ou seja, quando há um acordo explícito ou implícito entre empresas concorrentes para atingir determinados objetivos, nomeadamente para a fixação de preços ou para obter um controlo mais eficaz do mercado. 

A questão foi levantada por Marco Capitão Ferreira que, num artigo de opinião publicado no “Expresso”, diz que “uma empresa privada na área da saúde é livre de querer ou não continuar a manter o acordo com a ADSE”, mas que, no seu entender, aquilo a que se assistiu foi um cenário diferente: “Foram diversas empresas privadas, em perfeita consonância de posição negocial, a exercerem um poder de mercado conjunto como forma de pressão negocial. Alguém algures decidiu combinar que iam todos fazer o mesmo. Isto tem um nome e é ilegal: é um cartel.”

Mas vamos a factos. Primeiro foi a José Mello Saúde (hospitais CUF) a anunciar a sua intenção de suspender o acordo com a ADSE, depois a Luz Saúde e só mais tarde o grupo Lusíadas, mas todos com os mesmos argumentos: estão contra o processo de regularização de pagamentos, relativo aos anos de 2015 e 2016, com o qual a ADSE pretende reaver mais de 38 milhões de euros considerados como faturação excessiva. E ao mesmo tempo queixam-se da ausência de negociações para uma nova tabela de preços no regime convencionado do subsistema de saúde. 

A verdade é que estes casos de cartel não são inéditos. No ano passado, a Autoridade da Concorrência acusou cinco seguradoras – Fidelidade, Lusitania, Multicare, Seguradoras Unidas (antigas Tranquilidade e Açoreana) e Zurich – de constituírem um cartel de repartição de mercado e fixação de preços. Nesta acusação foram também visados 14 titulares de órgãos de administração ou direção das empresas, por estarem envolvidos na infração em causa. 

Segundo a AdC, o cartel terá durado cerca de sete anos e tido impacto no custo dos seguros contratados por grandes clientes empresariais destas empresas seguradoras, designadamente nos sub–ramos acidentes de trabalho, saúde e automóvel. 

Mas este não é caso único. Também no ano passado, a Concorrência avançou com acusações de cartel contra empresas de manutenção da ferrovia. Os grupos Mota-Engil, Comsa, Somague, Teixeira Duarte e Vossloh foram acusados de ter manipulado propostas para a Infraestruturas de Portugal. 

O certo é que os casos destas práticas vão-se somando nas mais variadas áreas. 

E agora, ADSE? Se esta intenção de rutura entre os maiores grupos privados e o subsistema de saúde se mantiver, os principais afetados serão os beneficiários. Estes descontam 3,5% do ordenado para este sistema e, se pretenderem continuar a recorrer aos prestadores privados, terão de utilizar o regime livre. E a utilização deste regime tem dois custos para os beneficiários, como alerta Pedro Pita Barros, que foi presidente da Comissão para a Reforma do Modelo de Assistência na Doença dos Servidores do Estado (ADSE). 

Por um lado, os beneficiários terão de adiantar o pagamento do serviço, solicitando depois o reembolso pela ADSE, que será diferente do valor que pagariam caso fossem atendidos no regime de convenção, e, por outro, terão de suportar “o custo de serem defrontados com a situação sem a esperarem, se não tiverem recebido qualquer informação sobre o assunto”, disse no seu blogue.

Mas Pita Barros chama ainda a atenção para o risco de perda de negócio por parte dos prestadores privados na relação com a ADSE, com os beneficiários a recorrerem a outros operadores que mantenham as convenções, ou até mesmo ao SNS. “A incerteza quanto a preços e receitas dos prestadores privados na relação com a ADSE é suficientemente importante para abdicarem desta ‘segurança de procura’”, salienta. 

Descontos atingiram quase 600 milhões Só no ano passado, os beneficiários descontaram para a ADSE 592 milhões de euros. As contas são de Eugénio Rosa, que lembra que, “contrariamente ao que acontece com os outros portugueses, os funcionários públicos pagam duplamente a saúde”. 

Já a despesa anual média por beneficiário ronda os 493 euros e vai variando consoante a idade. Por exemplo, para um beneficiário com idade inferior ou igual a 20 anos, a despesa está fixada em 130 euros, enquanto para beneficiários com mais de 80 anos ronda os 976 euros, ou seja, 7,5 vezes mais. 

Eugénio Rosa fez também um raio-X aos ganhos obtidos pelos maiores grupos hospitalares e chegou à conclusão de que, no período de 2015 a 2018, os cinco maiores grupos privados de saúde – Luz, Mello Saúde, Lusíadas, Trofa e grupo Hospitais Privados do Algarve – faturaram à ADSE 878,8 milhões de euros, o que representou 58,3% da despesa total que o subsistema de saúde teve neste período com o regime convencionado. “E estes grupos também faturam no regime livre muitos milhões de euros”, acrescenta o mesmo estudo.

“Esta captura da ADSE por parte destes cinco grandes grupos privados de saúde ajudou-os a eliminar, muitas vezes pela aquisição, pequenos e médios prestadores, diminuindo a concorrência e aumentando o seu poder sobre a ADSE, ameaçando a ADSE e os beneficiários, nomeadamente através da sua associação (APHP), de suspender convenções”, realça o economista.

Face a este cenário, Eugénio Rosa defende a redução do poder destes cinco grandes grupos com vista a criar uma situação de maior equilíbrio, uma vez que, apesar de admitir que estes grupos sejam “indispensáveis”, considera ser necessário assinar novas convenções com pequenos e médios prestadores privados.