Katia Guerreiro. “Podia ter chegado mais longe se me tivesse disposto a tudo”

Katia Guerreiro. “Podia ter chegado mais longe se me tivesse disposto a tudo”


Katia Guerreiro sobe hoje, sexta-feira, ao palco do Grande Auditório do CCB  para cantar o “Sempre” de sempre e não apenas de agora


Ainda exerce medicina?

Já não. Deixei de exercer quando a minha filha nasceu há seis anos. 

Deixou por uma questão de tempo?

Sim, por uma questão de tempo. Antes conseguia dividir-me entre o fado e a medicina. Ter de dividir [o tempo] ainda com uma criança, ainda para mais quando queria tanto gozar a maternidade, achei que já era de mais. Muito de mais.

Ser médica é uma profissão exaustiva?

É muito exaustiva. Requer muita concentração e estudo permanente. E obriga a recuperar energias diariamente. Era impossível continuar a fazer tudo o que fazia, e ainda ser mãe. Ou deixava a medicina ou deixava a música. Deixar a medicina pareceu-me a opção mais lógica porque na música acho que faço alguma diferença. Na medicina, era boa médica mas não era melhor que ninguém. Não se perdeu nada (sorri). 

A medicina foi obstáculo para a música?

Claro. A medicina condicionava muito a minha progressão na música e a minha vida artística. Mas era consciente. Não queria deixar de ser médica. Para mim, era ponto assente manter as duas atividades. Deixar que a música tomasse conta da minha agenda ia fazer com que abandonasse a medicina.

Mesmo reconhecendo a consciência da opção, podia ter chegado mais longe? 

Podia, se me tivesse disposto a tudo. Não me dispus a tudo. Decidi ser muito seletiva no sentido que não me deixava que me marcassem digressões de mais de 15 dias, não deixava que me marcassem concertos “malucos” daqueles que os promotores pedem. “Agora tem que se investir” e íamos cantar com a casa às costas e a pagar para isso. Não deixei que isso acontecesse. Não me arrependo. A minha progressão fez-se não à custa de uma promoção forçada mas de uma promoção natural que os concertos faziam e fazem. Na próxima semana, vou a Zagreb cantar com a Orquestra Filarmónica [local]. Ninguém me vendeu, foi a Orquestra que me procurou. Foi o meu nome a ganhar lugar e reputação. Dá-me algum gozo ser assim. 

Trabalhar com o José Mário Branco que apesar da ligação estreita com o fado, não é alguém do fado, foi aceitar a folha em branco?

Sim, aliás o espírito foi esse. Não abandonei quem era antes. Ele conhecia-me daquilo que fiz, e aliás a dúvida do José Mário Branco quando aceitou trabalhar comigo foi: “em que é que eu vou ajudá-la?”. Falámos muito sobre isso. E ele foi buscar tudo aquilo que achava que tinha que corrigir. Sobretudo, tudo aquilo que fui ganhando, resultado da energia que nos é imposta pela energia e eletricidade dos concertos, e que nos fazem querer dar tudo às pessoas naquele momento. Isso faz com que se caia em alguns exageros interpretativos ou expressivos, que tinham de ser enxotados para que a naturalidade vencesse e para que a simplicidade retornasse. Foi isso que o José Mário Branco tentou trazer. 

Há ligação entre o ter abdicado da medicina para se dedicar à “profissão de mãe” e o recuperar a leveza?

Há, naturalmente, e aliás o José Mário Branco fala muito dos meus filhos. Muitas vezes dizia-me: “Pensa que estás a cantar para a tua filha e não a queres acordar”. Ou “pensa que estás a cantar para o teu filho e ele precisa de ser embalado”. Para que eu não entrasse na euforia interpretativa naturalmente imposta pelos espetáculos. No palco, é necessário fazer um exercício de nos ligarmos à terra e deixar a energia ir para o chão e não para o ar. Cantar fado não é linear e é uma reação a uma carga emocional tão intensa que, por vezes faz com que se queira transmitir essa emoção através das capacidades vocais. Quem tem essa boa ferramenta, consegue fazer quase tudo. É quase um rebuçado. Às vezes, só a força da palavra é suficiente. 

Aceitar a folha em branco o que implica?

Baixar as armas todas. 

Quando já se sabe tanto, a vaidade tem de ir para o lixo?

Temos de estar seguros. É mais importante quando já somos pessoas confiantes do que quando estamos a aprender. Agora, há coisas que se aprendem com a experiência e maturidade que acabam por ser essas sim as ferramentas importantes para se usar com inteligência e não com a força. 


Fotografia de Mafalda Gomes 

O fado é uma escola de vida no sentido em que as palavras e poesia são ensinamentos?

As palavras são o veículo. O fado é o veículo da expressão máxima das nossas emoções. E quem não é do meio, a determinada altura, quando encontra o fado, também acaba por se deixar emocionar. Por isso, é que há cada vez mais gente a gostar de fado. Digo isto há muitos anos: há sempre um momento na vida em que alguém que diz que não gosta de fado e passa a gostar. Porque o fado é a forma mais bonita de expressar aquilo que sentimos. O amor, o desamor, a saudade, até as alegrias… o fado tem muita graça cantado alegre. O fado é um espelho da alma e quando as pessoas conseguem identificar-se com isso é porque chegaram a um momento na vida em que passam a dar importância às emoções. E o fado é um refúgio.

Quando ainda exercia medicina, que balanço emocional tinha com o fado?

Era a cura. Ainda hoje é. Enquanto exercia medicina, chegava ao palco e sarava as minhas dores. Ia para casa sempre muito carregada e o palco servia para me tratar.

Reconheciam-na muitas vezes?

Sim, e quando não estavam à espera de me encontrar havia sempre uma estranheza. “Deixa lá ver se ela é boa nisto”. No fim, havia um sorriso e diziam-me: “Gosto muito de a ouvir cantar”. Chegaram a pedir-me para cantar. Mas não, cada coisa en su sitio. Quando vestia a bata, não usava lantejoulas, brincos, pulseiras ou anéis. 

No fado, são sobretudo as mulheres a singrar enquanto intérpretes. Por outro lado, é um meio com uma tradição muito forte. Como mulher, já passou por situações difíceis?

Não, pelo contrário. No fado, há um grande respeito dos homens pelas mulheres. Admiram a sua forma de cantar e identificam na mulher uma grande capacidade interpretativa das emoções. Há uma fação muito marialva, e aí sim encontram-se posturas machistas, mas em relação a mim nunca senti. Também não dou muita importância, não sou uma feminista pura, sendo que exijo respeito. A mulher tem um papel muito importante na sociedade e se mais oportunidades houvesse para a mulher este mundo seria um lugar mais doce e justo. Aliás, ando revoltada com esta loucura que a vida impõe. Tudo tem de ser para ontem, porque a tecnologia nos impõe, o mail e o telefone sempre ligados é uma coisa muito machista. O homem quer fazer tudo e tem de dar resposta imediata a tudo. A mulher quer dar resposta a tudo mas tem muitas respostas a dar. Em casa, ao marido, aos filhos, aos pais, aos irmãos e tem responsabilidades na empresa para construir uma carreira profissional. A mulher é extremamente exigente consigo mesma para não falhar em coisíssima nenhuma. O mundo está-se a esquecer que tudo na vida é importante, quando se está só a dar importância ao trabalho. As famílias não têm tempo para se olhar, o telemóvel está sempre ligado, alguém responde a um mail enquanto se janta, alguém foi de férias mas continua a responder a chamadas de trabalho, seja homem ou mulher. Está tudo a ficar louco. 

Deixe-me fazer de José Mário Branco. Não será uma necessidade capitalista de estar sempre a vender algo?

Talvez seja. Nunca perder a oportunidade de vender alguma coisa. Não consigo viver assim. Posso não dar uma resposta imediata mas ganhei outras coisas. Nem que seja cinco minutos de silêncio.

Como mãe, como pensa gerir essas questões?

Em casa temos regras para os tablets e telemóveis. Só podem mexer no tablet um bocadinho ao fim de semana. 

A sua filha de seis anos já sente a pressão tecnológica?

Já, claro, mas já sabe que a regra é essa e respeita. Quer dizer, às vezes tenta mas eu não deixo (sorri). O resto é muito importante: estar comigo na cozinha, desenhar, ver desenhos animados… Com essa idade, os miúdos não têm filtro. Correm vídeos e vêm indiscriminadamente o que lhes aparece. Não lhes traz nada. 

Como se relaciona com as redes sociais?

É o que tem de ser. Gestão de carreira. Não exponho a vida pessoal, salvo coisas muito pontuais. A minha filha nunca apareceu nas redes sociais. Tem direito à sua privacidade. Uso para promover o meu trabalho mas não vou atrás das tendências. Eu sei todas as estatísticas, o publicar fotografias antigas, as horas a que as pessoas estão mais atentas… É às 9 da noite que as pessoas vêm as minhas coisas? Ok, se às 4 da tarde me apetecer partilhar, partilho. Sou um bocadinho desagradável nessas coisas. Tenho quase 19 anos de carreira. Quando comecei não havia redes sociais e a minha carreira teve aquela progressão de que falámos. Atingiu um ponto de onde não saiu. Foi um crescendo natural. É o convite da Orquestra de Zagreb. É um festival no Canadá onde estive a convite de uma grande cantora árabe e agora querem que volte. E não são as redes sociais, é aquilo que faço bem feito, a coerência e a segurança que faz com que me mantenha. A única coisa em que me devo focar é na verdade. Não me visto de florescente, não vendo nem vivo das marcas, e não quero que a minha vida seja de plástico. Acredito que aquilo que as pessoas querem ver nas redes sociais é a minha verdade. 

Entre fadistas, há um despojamento cada vez maior do corpo em produções para revistas e no Instagram. Como observa esse fenómeno de despir o fado?

Expor mais é uma forma de vender. Há pessoas que têm mais para vender além da voz. Eu não tenho (sorri). Tenho uma imagem cuidada, sou cuidadosa com a elegância do espetáculo porque acho que o todo deve ser bonito – devemos ir bonitas, as pessoas querem ver isso – mas sempre tive esse cuidado desde o primeiro dia. Para o concerto do CCB, tenho um vestido lindíssimo. Vou mostrar a minha elegância, não vou mostrar a elegância do meu corpo. Mostrar outros atributos não me diz nada. 

Sendo o curso de Medicina muito exigente, como conciliou os estudos com o canto?

Cantava por graça, só. Fazia apenas eventos privados de meia hora. Estudava, fazia o ensaio de som, voltava a estudar, esperava pelo meu momento, e cantava. Quando voltava para casa, ia feliz da vida porque tinha aliviado o stress. Ajudou-me imenso, aliás os anos em que tive melhores notas foram aqueles em que conseguia fazer isso. Descontraía. 

Quando o fado passou a ser um projeto de vida, não hesitou?

Não, só passei a ter consciência da importância ao fim de dez anos. Nos primeiros tempos não tinha a noção que estava a fazer muita diferença. Quando comecei a cantar, tinha morrido a Amália, não havia mais ninguém e o mundo queria fado. A minha carreira começa porque os franceses se sentiram órfãos da Amália e os produtores perceberam essa necessidade do público. Começaram à procura de fadistas e isto coincide quando o João Veiga me ouve cantar, fala com o Joaquim Balas (produtor e agente) que tem uma amizade muito grande com um produtor em França e que leva o meu nome. Eu começo a fazer concertos em França e daí vou para a Marrocos. Turquia, Tunísia, Nova Caledónia, Espanha, Itália… Faço as coisas com ligeireza e o mundo queria fado mas ninguém me conhecia, achava eu. A determinada altura, faço um balanço de dez anos de carreira. E já havia pessoas a fazer 800 quilómetros para me ouvir cantar. Já era o meu nome e não só o fado. E aí sim, percebi que o fado se estava a impor na minha vida. Tive de equacionar tudo isto ao ponto de começar a pensar em fazer a especialidade. Não tinha escolhido a especialidade a seguir ao internato geral porque entre ganhar uma rotina a fazer urgências hospitalares e as viagens, estava tudo bem. Estudava, ia a congressos, dava os meus concertos e voltava. Estava tudo bem organizado e habituei-me a viver assim.  Tentei fazer a especialidade num regime especial mas tive uma filha. Não deu mais. E o fado ganhou uma importância tremenda. Já não podia olhar da mesma forma ligeira, sobretudo pelo respeito às pessoas que me fizeram chegar aqui e ao público.

Ter outro ofício permitiu-lhe ser mais independente?

Sim, absolutamente. E fui respeitada por isso. As minhas escolhas sempre foram muito sérias. Nunca houve uma excitação da minha parte para “fazer as coisas”. Decidi com muito critério 

A geração da Katia foi estigmatizada pelo fantasma da próxima Amália?

Nessa altura, sim, mas nunca levei a mal. Havia a necessidade de preencher um espaço que, fisicamente, ficou vazio. A Amália será sempre insubstituível. Como são insubstituíveis a Hermínia Silva, a Edith Piaf e tantas outras. Apareceu a Mísia, um caso isolado. A Mafalda Arnauth, antes de mim, que teve a coragem de dar um passo em frente, mas as pessoas estavam sempre à espera de uma nova Amália. As comparações eram inevitáveis mas já acabaram. Aliás, a morte da Amália fez com que se impusesse ainda mais. Já ninguém procura uma nova Amália. Ninguém é comparável. Esse estigma acabou.

A rivalidade no fado é mito ou real?

É real. Claro que é real! Dou-me bem com quase toda a gente mas a competitividade é muito grande. E há rivalidades. Eu não sou rival de ninguém. Estou no meu lugar mas é evidente que sinto essa rivalidade. Quando se fala no fado, toda a gente fala dos outros. E porquê? Porque são rivais! Claro que sim! Até se diz: “Lá estamos com as fadistices”. 

Vê-se como uma pessoa do fado ou estrangeira ao fado?

Sou do fado no sentido em que sou das mais fadistas que há. Não nasci nem cresci no meio do fado mas não caí de paraquedas. Não sou estrangeira do fado. Comecei a ouvir fado de muito pequenina. Era minúscula quando ouvia a voz da Amália e as guitarras. Aquilo cristalizava-me. Eu nem queria cantar. Era extremamente tímida, nunca iria cantar à frente de ninguém. Agarraram-me no braço e puseram-me à frente do touro. E eu percebi que isto me fazia uma mulher diferente. Tinha qualquer coisa para dar aos outros, qualquer coisa de diferente para dizer ao mundo, sendo que não queria dizer nada ao mundo. O fado não foi um acaso, veio desde cedo. 

Faz vida nas casas de fado?

Não posso, tenho uma vida como a maioria das pessoas tem e prezo imenso a minha família. Às 7 de manhã, tenho dois alarmes a tocar em casa: chamam-se Mafalda e João Mário. Como posso fazer essa vida? Enlouquecia de cansaço. Nunca cheguei a fazer porque a medicina não me deixava. Aí, tinha um outro alarme chamado hospital. Não podia. Ia pontualmente como agora. Não me fez mal não ter feito, e faz-me bem ir como vou. Não tenho as fadistices.

Foi Mandatária da Juventude de Cavaco Silva na campanha presidencial de 2005. Ficou marcada daí para a frente?

Sim, bastante. 


Fotografia de Mafalda Gomes

Quando se soube que ia gravar com o José Mário Branco?

Essa questão da direita e da esquerda é um grande disparate. Não sou de direita, nem de esquerda, sou uma mulher de pensamento livre. Tanto condeno privatizações ridículas, como condeno opções à direita e à esquerda. Deixei de fazer críticas públicas porque as pessoas deixaram de conseguir interpretar com abertura. Aqueles que batem no peito e dizem ser democratas, muitas vezes são os primeiros a não aceitar as ideias dos outros. Não me estigmatizem com a direita nem com a esquerda. Não sou nada disso, sou uma mulher humanista. E aliás, quando comecei a trabalhar com o José Mário Branco falámos de tudo. De Cavaco Silva, da direita, da esquerda, o Zé Mário criticou a direita e a esquerda como eu critiquei a esquerda e a direita. E chegámos à conclusão que somos muito iguais para aquilo que queremos para o mundo, para as pessoas e para a justiça social. Por isso, é que ele esteve envolvido em movimentos de esquerda e a determinada altura desligou-se porque percebeu que era tudo um jogo. A política é um tabuleiro de xadrez em que as pessoas se comem umas às outras. O que interessa são as pessoas e aquilo que conseguimos dar aos outros. Não é aquilo que recebemos. Quando o José Mário Branco chega a um congresso e diz: “Não saí do partido, o partido é que saiu de mim” é porque deixou de se identificar com essas jogadas. Eu não sou uma peça dos políticos. Não existo para a política. Esqueçam. Existo para as pessoas e para a vida. Foi isso que fez com que nos apaixonássemos um pelo outro. 

É hoje uma pessoa mais desiludida do que quando aceitou o convite?

Com certeza. Quando aceitei ser mandatária de Cavaco Silva, acreditava que as pessoas ainda tinham alguma seriedade intelectual. Fizeram jogos para me denegrir e para denegrir uma pessoa séria, com um sentido de Estado incrível e de quem sou muito amiga.