É provável que o amor dos outros já nos tenha dito mais do que esses envolvimentos e casos que, à falta de melhor, nos foram dando uma vaga ideia do que seja o amor. As conquistas mais difíceis não saciaram sempre as noites passadas a afiar as doces armas, em antecipação. E o dia de São Valentim talvez seja menos daqueles que se contentam com as suas aproximações, do que é dos que persistem, como caçadores de tempestades, esses que vão fazendo a fama dos amorosos, tão comprometidos com a sua paixão, que se tornam eles mesmos a coisa amada. Esses que parecem guardar e manter vivo o anseio, vivendo a distância como uma canção que se consegue ouvir só cortada, aos poucos, como um corpo que se persegue na rua e, assim, não acaba de nos encantar.
O poeta mexicano Jaime Sabines viu bem as coisas, a condição que faz dos amantes aqueles que cuidam do amor. “Os amorosos andam como loucos/ porque estão sós, sós, sós,/ entregando-se, dando-se a cada instante,/ chorando porque não salvam o amor./ Preocupa-os o amor. Os amorosos/ vivem dia a dia, não podem fazer mais, não sabem./ Sempre a ir-se,/ sempre, para algum lado./ Esperam,/ não esperam nada, mas esperam./ Sabem que nunca hão-de encontrar./ O amor é a prorrogação perpétua,/ sempre o passo seguinte, mais um, mais um./ Os amorosos são os insaciáveis,/ Os que sempre – que bom! – hão-de estar sós.”
É primeiro a esses que dedicamos este trabalho, esta recolha de excertos de cartas e versos, para os que nutrem uma fome imensa mas que se mantêm fiéis a um gosto tão particular que chega a passar por esquisito. O amor, afinal, é uma espécie de limite. Estas são cartas e versos de amantes brutais, que nem sempre obtiveram uma exacta simetria na sua correspondência amorosa. Quando apaixonados, foram sôfregos, não pouparam no impulso, não foram sovinas com o amor, e na ligação com o outro. São amantes que o nosso tempo parece tornar cada vez mais raros, tendo muitos possivelmente aprendido a expressar-se na dificuldade de superar distâncias que antes se faziam sentir como hoje já não acontece. Afinal, quantos homens ou mulheres terão alguma vez dado por si encadeados, desse outro lado, como a presa ou o alvo de um amor fabuloso como este que se percebe nas palavras que a poeta Marty McConnell meteu na boca de Frida Kahlo. São de tal modo pregnantes, de tal modo atentas à sensibilidade que transborda nas próprias cartas da pintora mexicana que, hoje, muitos citam este poema como se Frida o tivesse escrito: “Partir não chega. Tens de ficar longe. Treina o teu coração como um cão. Muda as fechaduras da casa que ele nunca visitou. Sua miúda cheia, cheiinha de sorte. Tens um apartamento do teu tamanho. Uma banheira cheia de chá. Um coração do tamanho do Arizona, mas nem por sombras tão árido. Não amaldiçoes o teu passado, os teus dedos tortos dos pés, os teus problemas são marionetas de papier mache que fizeste ou compraste porque o vendedor no mercado foi tão eloquente que sentiste que tinhas de os ter. Tinhas de o ter. E tiveste. E agora recolhes a ponte entre as vossas casas, obriga-lo a ligar antes de te visitar. Tu tomas como garantido o amante, tu tomas o amante por alguém que te olha como se talvez fosses uma maga. Faz da primeira garrafa que bebas aqui uma relíquia. Coloca-a num altar improvisado com uma faca e cinco mirtilos. Não percas demasiado peso. As miúdas estúpidas estão sempre a tentar desaparecer como vingança. E tu não és estúpida. Amaste um homem com mais mãos estendidas do que uma horda de pedintes, e aí estás tu: o coração como uma cama de dossel, o coração como uma tela. Coração gotejando algo tão forte que quem passa na rua consegue cheirá-lo”.
Diderot em carta a Sophie Volland
10 de junho de 1759
“Escrevo-te sem conseguir vê-lo. Eu vim. Eu quis beijar-te a mão… Esta é a primeira vez que escrevo no escuro… sem saber se estou de facto a desenhar as letras. Onde quer que te apareçam meros gatafunhos, lê que eu te amo.”
Marguerite Yourcenar a André Fraigneau
"Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornam pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas tuas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Com pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino."
Yourcenar, outra vez
"Duas horas da manhã. Os ratos procuram nos caixotes os restos do dia morto: a cidade pertence aos fantasmas, aos assassinos, aos sonâmbulos. Onde estás tu, em que leito, em que sonho? Se te encontrasse, tu passarias sem me ver pois não somos vistos pelos nossos sonhos. Não tenho fome: esta noite não consigo digerir a minha vida. Estou cansada: caminhei toda a noite para semear a tua recordação. Não tenho sono: nem sequer tenho apetite da morte. Sentada num banco, embrutecida apesar de tudo pela aproximação da manhã, deixo de me lembrar que te procuro esquecer. Fecho os olhos… os ladrões não querem senão os nossos anéis, os amantes a carne, os pregadores as nossas almas, os assassinos a vida. Podem tirar-me a minha: desafio-os a nada lhe mudar. Inclino a cabeça para ouvir por cima de mim o remexer das folhas… Estou num bosque, num campo… É a hora em que o Tempo se disfarça de varredor e Deus talvez em trapeiro. Ele avarento, ele teimoso, ele que não consente que se perca uma pérola nos montes de cascas de ostras às portas das tabernas. Pai nosso que estais no céu… Verei alguma vez vir sentar-se a meu lado um velho de sobretudo castanho, com os pés enlameados por ter tido, para me alcançar, de atravessar sabe Deus que rio? Ele deixar-se-ia cair no banco, tendo na mão fechada um presente muito precioso que seria o bastante para tudo mudar. Abriria os dedos lentamente, um após outro, muito prudentemente, por que aquilo foge… Que seguraria ele? Uma ave, um germe, uma faca, uma chave para abrir a lata de conserva do coração?"
Um dos poemas para Cris
de Julio Cortázar
“Nunca saberei porque a tua língua entrou na minha boca
quando nos despedimos no teu hotel
depois de uma visita amigável à cidade
e de um ajuste preciso de distâncias.
Acreditei por um momento que apontavas
uma data futura,
que abrias uma terra de ninguém, um interregno
de onde alcançar o teu minucioso musgo.
Cercado por amigas me beijaste,
eu a excepção, o monstro,
e tu a transgressora balbuciante.
Vá-se lá saber quem tu beijavas,
de quem te despedias.
Fui o vigário feliz de um só instante,
o que às vezes encontra na saliva
um breve gosto a madressilva
sob os céus austrais.”
René Crevel, em “A morte difícil”
“Chocamo-nos, magoamo-nos. Entre nós nada existe que não seja luta. O nosso amor não é uma cárie. Rasgamo-nos, ficamos com os lábios a sangrar, os nossos maxilares quebram-se mas nem um dente foi atacado na sua polpa. Tortura-me, bate-me com o seu espírito duro, o seu espírito hermético, e quanto mais nos amamos mais inimigos somos, embora nenhum de nós deseje que o outro se submeta. É preciso que Ônfale seja uma mulher para fazer Hércules fugir e ela sentir regozijo por vê-lo fugir”
Robert Desnos a Youki
15 de Julho de 1944
“Enquanto trabalhava no dia do meu aniversário, pensei longamente em ti. Será que esta carta chegará a tempo do teu aniversário? Gostaria de te dar 100 000 cigarros louros, doze vestidos de grandes costureiros, o apartamento da Rua de Seine, um automóvel, a casinha da mata de Campiègne, a de Belle-Isle e um raminho de flores de cinco tostões. Na minha ausência, compra à mesma as flores, que eu tas pagarei. O resto, prometo-o para mais tarde. Mas, acima de tudo, bebe uma garrafa de bom vinho e pensa em mim.”
António José Forte
a Aldina
“conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança
marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca
um ano dois anos um século
agora um alfinete na garganta deste pássaro
tão próximo e tão vivo
outro alfinete o último o maior
no meu próprio plexo
MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites….
e a distância que vai da terra à minha infância
e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos
e ainda ficam cabelos por contar
anos e anos ficarão por contar
DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE
O TEU ÚLTIMO CABELO”