Uma sociedade é feita de retrocessos, marasmos e dinâmicas positivas. Houve um tempo em que os seres humanos e a natureza, em função das suas inações e das ações, geravam acontecimentos que, em razão da sua relevância, podiam ou não ser inscritos nos anais da História, das memórias individuais ou do acervo de património de vivências das comunidades.
O mundo mudou. Agora há quem para protestar seja alavancado por uma recolha de fundos, mais ou menos opaca, que coloca no limiar do custo zero o esforço de contestação – zero, não, porque para quem não tem responsabilidade relevante na situação resultam sempre danos de acesso a serviços ou no exercício de direitos da sua esfera de liberdade. Agora começa a estar instituído um sistema em que os acontecimentos são gerados, emergem especialistas nos média que os comentam para depois neles intervirem e, em momento posterior, passarem de comentadores a promotores de acontecimentos, factos ou realidades próximas do virtual. O negócio da montra televisiva está de vento em popa. Quanto maior é a exposição profissional, maior a clientela que bate à porta nos dias seguintes. E se a realidade não se configura com as necessidades de notoriedade orientada para o mercado, então que se induzam nas dinâmicas sociais os acontecimentos adequados. Há um ciclo pernicioso, desde logo sob o ponto de vista ético, em que uma estação de televisão acolhe um profissional num espaço de comentário da atualidade, confere-lhe a notoriedade adequada e, depois, não se coíbe de o colocar a falar sobre um acontecimento que foi gerado por ele. Não é quadratura nem circulatura, é simplesmente uma vergonha ética, uma manigância comercial de consultórios, escritórios de advogados e gabinetes que conta com a conivência dos órgãos de comunicação social e de quem supervisiona o exercício no âmbito das licenças de emissão e da Constituição da República Portuguesa.
Para os mais incautos será apenas mais um especialista a falar sobre realidades, muitas das vezes no inusitado esforço para preencher tempo de emissão em conquista de share. Na realidade, tudo não passa de um compromisso comercial encapotado. A estação dá palco, gera a estrela mediática, que faz negócio com os telespetadores e regressa por vezes à antena em causa própria. No limite, pode ir ao ponto de o protagonista do bitaite ou do respetivo enquadramento profissional promover iniciativas que geram acontecimentos suscetíveis de serem comentados. Assim, sem ética, sem rigor, sem pingo de vergonha na cara dos envolvidos. O consumidor deste gato por lebre, alheado da marosca comercial subjacente, toma a realidade projetada por válida e consequente, quando não passa de um expediente de conquista de mercados das audiências e de clientes. Mesmo com esse engodo, por vezes é difícil escamotear que, afinal, o alegado especialista, descontados os nervos da aparição, não sabe muito bem do que está a falar.
Há uma deriva de défice de ética, de falta de rigor e de ausência da transparência que permite o escrutínio cívico. Não é um exclusivo do crowdfunding da Ordem dos Enfermeiros nem de outros expedientes que são acarinhados ou rejeitados consoante se está no poder ou na oposição, em vez de serem aferidos à luz de valores, de princípios e da legalidade. Em tudo isto há um padrão de vale-tudo que é inaceitável, mas é o que temos. O protesto, o comentário e a emissão de perspetivas especializadas estão tomados pelo negócio. Quase tudo é notoriedade e negócio, no conteúdo, no tempo e na forma. Com uma confrangedora ligeireza nos argumentos e muito exercício de construção de narrativas tribais, maniqueístas e inconsequentes, elevadas a exercício simplório de cidadania preguiçosa nas redes sociais e nos comentários online.
Vejam bem a ligeireza que permitimos. Em 25 de março de 2016, há quase três anos, o semanário “Expresso” noticiou “Lista do saco azul do GES com avenças a políticos e jornalistas”. Dos políticos, lá se foi sabendo alguma coisa; dos jornalistas, o máximo que tivemos foi uns nomes em surdina. Vejam bem que num país de justiceiros mediáticos, de amplos conluios entre fontes do sistema judicial e os jornalistas, não houve uma alminha que, invocando o direito a informar e o interesse público da informação, colocasse cá fora os nomes dos jornalistas avençados pelo saco azul do GES. Já lá vão três anos. Logo agora que, em período pré-eleitoral, estamos numa fase de ajustes de contas.
Pelo andar da carruagem, ainda vamos ter de lançar uma petição nacional ou um movimento de libertação dos nomes do saco azul do GES por ocasião de mais um aniversário qualquer sobre a autocensura da classe. Afinal, a cegueira na defesa da classe, enunciada recentemente na advertência ao juiz desembargador Neto Moura, não é um exclusivo da magistratura. Em todo o caso, é uma violência.
NOTAS FINAIS
Regabofe. Quem semeia ventos só pode esperar colher tempestades. Não se pode ter um critério para exigir do governador do Banco de Portugal e uma entediante complacência com uma falha grave do sistema prisional (certamente, uma entre muitas) que permite que reclusos numa cadeia organizem uma festa e a transmitam em direto nas redes sociais, com meios que são proibidos naquele espaço. É a mesma tolerância com a permissividade e a irresponsabilidade desregulada a que se assistiu recentemente noutras latitudes da segurança e vida de uma comunidade de um Estado de direito.
Engraçadinhos. Os portugueses têm, por regra, memória curta. Nesse segmento, há benfiquistas que esqueceram as conquistas de Rui Vitória e idolatram Bruno Lage, numa lógica de arremesso contra o ponto em comum, o presidente Luís Filipe Vieira, que escolheu os dois, um com títulos, o outro com vitórias e bom futebol. É difícil o exercício do bota-abaixo oportunista, sem memória, com pouco presente e nenhum futuro.
Escreve à quinta-feira