Massive Attack. Tensão pós-milenar

Massive Attack. Tensão pós-milenar


Quando “Mezzanine” saiu, o 11 de setembro ainda não derrubara as barreiras ocidentais de segurança mas o medo já era coletivo. Vinte e um anos depois, os Massive Attack reconstroem essa tensão sem lugar a finais felizes. Um “pesadelo nostálgico”, dizem, para enfrentar, como o corno do touro


Foi Tricky a cunhar o termo que haveria de perseguir o final da década de 90 como um fantasma. “Pre-Millenium Tension”, a premonição alucinada de uma época de medos e incertezas. Medo da internet, medo do novo século, medo do milénio, medo do vírus Y2K. O druída tinha visto o futuro e era um pesadelo. Em 1996, dois anos antes do bizarro “Blair Witch Project”. Cinco antes de a segurança mundial ser abalada quando o derrube das Torres Gémeas pôs em causa a paz podre em que o mundo mergulhara após a queda do Muro de Berlim e da desagregação da ex-União Soviética e da antiga Jugoslávia.

A arte teve razão antes de tempo ao ver para além da calmaria política da segunda metade da década de 90. Na Europa, distribuíam-se subsídios. Alguém haveria de pagar a fatura mais tarde. Em Portugal, subsídios para a agricultura pagavam trigo em forma de jipes. Em Bristol, suspeitava-se da realidade para além da cortina de fumo.

Quando “Mezzanine” chega em 1998, já os Massive Attack estavam muito para além de um trip-hop normalizado em correntes estéticas e rítmicas como o downtempo que, na sua pior versão, acabou por ser banda sonora de água a correr nas pedras.

Para esta história fazer sentido, é necessário revisitar a pré-história. A de Bristol, cidade portuária com uma forte comunidade jamaicana, que haveria de estar na base dos primeiros soundsystems, ainda na década 80. É num desses coletivos, o Wild Bunch, que há-de ser plantada a semente dos Massive Attack. Inspirados pelos Smith & Mighty, dupla que no final dos anos 80 cruzava uma linguagem rítmica não-linear, e por isso paralela mas não dissociada de nomes como os Soul II Soul que então davam cartas graças ao single “Back To Life”; de movimentos como o acid house; ou bandas atentas como New Order, Pet Shop Boys e Stone Roses, que absorviam subculturas para pop mais à esquerda, nascem como um triângulo de personalidades formado por 3D, Daddy G e Mushroom

Quando “Blue Lines” chega em 1991, há, como quase sempre nas mudanças de década, um clima propício à mudança. E se, quase sempre quando se fala desse ano, vem à memória Seattle (Nirvana, Pearl Jam), o rock americano (Metallica, Red Hot Chili Peppers, Guns N’Roses e até R.E.M) e a reinvenção dos U2 em “Achtung Baby”, “Blue Lines” dos Massive Attack fez uma revolução silenciosa impondo hinos como “Unfishined Symphony” sem forçar e contribuindo para moldar a canção pop à medida de novos ritmos.

Em 1998, o filme já era outro. Tricky, um dos “residentes” do Massive Attack, saíra de casa para ir ver com os seus fantasmas. E em quatro anos, os Portishead definiam a carreira com uma taxa de juro altíssima. Tal como Bob Marley é maior que o reggae, este trio haveria de ser maior que o trip-hop. À medida que os Portishead saíam de cena e Tricky se consumia na própria poção, os Massive Attack ficavam cada vez mais sós e bem acompanhados. Se “Blue Lines” foi a chave do cadeado, “Mezzanine” arrombou a fechadura por dentro.

O ponto de partida de Robert Del Naja (3D), o cérebro do grupo, foi a memória de bandas new wave e pós-punk como The Cure, Gang Of Four, Wire, Cocteau Twins e Siouxsie & The Banshees. “Mezzanine” começou por se chamar “Damaged Goods”, título da canção icónica da banda de punk-funk Gang of Four que vinte anos furara o punk com formas dançáveis e que haveria de escrever o livro de estilo dos Red Hot Chili Peppers.

Elizabeth Fraser, a voz sonhadora dos Cocteau Twins, fez de “Teardrop” o segundo hino do grupo, intermediado, é verdade, por “Protection”, cantado por Tracey Thorn (Everything But The Girl). E Horace Andy, um veterano cantor reggae, voltou a ser crucial no clima de claustrofobia sonora.

O álbum começa lento e hipnotizante com “Angel”, todo ele chama a arder lentamente enquanto o jamaicano embala o pânico em doçura. Canções como “Inertia Creeps” importam carga industrial de peso emocional e, por exemplo, “Man Next Door” podia ter sido escrita por Robert Smith para o clássico “Desintegration” dos Cure.

Na próxima segunda e terça-feira (bilhetes esgotados), os Massive Attack pegam o touro pelo corno na sala onde deram inúmeros concertos. Mas em vez de contemplarem o passado, recontextualizam-no no presente sem lugar para brincadeiras ou finais felizes. “O nosso próprio pesadelo nostálgico”, definiu 3D sobre um espetáculo construído de raiz para celebrar os 21 anos de um álbum simbólico de uma época, sobrevivente ao tempo sem marcas de desgaste.

Para as primeiras noites da digressão iniciada a 28 de janeiro em Glasgow, os Massive Attack repescaram “I Found a Reason” dos Velvet Underground, um dos samples usados em “Risingson”, revisitaram à sua maneira “10:15 Saturday Night” dos The Cure e o clássico “Bela Lugosi’s Dead” dos Bauhaus.

O videasta e ensaísta Adam Curtis é o autor da parte visual do espetáculo. Elizabeth Fraser e Horace Andy são os cantores convidados. O álbum é reinterpretado e reimaginado na íntegra. Talvez haja isqueiros em “Teardrop” mas atenção porque “isto não é um concerto de êxitos”, alerta 3D.