“Quem paga a conta?”: Guido Calabresi e a emergência dos movimentos populistas


A degradação da democracia (ou de uma certa visão do que seja esta forma de governo) é que é a causa dos populismos


1. Muitos julgam que a economia, o direito e a política são domínios científicos totalmente estanques entre si, marcados pelo princípio da indiferença recíproca – e só (muito) ocasionalmente se poderiam intersetar na explicação-compreensão dos fenómenos sociais –, o que nos parece absolutamente erróneo. Porque parte da premissa (falaciosa e perigosa) segundo a qual a vivência social – como o comportamento individual de cada um de nós – se poderá fracionar em múltiplas facetas, todas desconexas entre si. Ora, se o ser humano é um universo, então a sociedade (em que ele necessariamente se integra) também o será : separar as diferentes componentes deste universo apenas redundará numa multiplicidade de compreensões imparciais – as quais equivalem a uma incompreensão geral sobre os fenómenos e movimentos que vão ocorrendo no seu seio. A verdade é que as decisões económicas são influenciadas pelo direito e influenciam-no; o direito – as leis, os atos legislativos, as decisões dos tribunais e aquilo que nós, no exercício da nossa liberdade, fazemos diariamente, como celebrar contratos – condiciona, molda e é moldado pela economia; a política, finalmente, cria o direito e é por ele limitada, ao mesmo tempo que estrutura e é pressionada (legitimamente) pela economia.

2. Pois bem, a compreensão dos tão badalados movimentos populistas que triunfam em várias latitudes e longitudes passa por enquadrar os comportamentos dos eleitores no quadro geral da sociedade – de facto, os populismos não são a causa da degradação da democracia; pelo contrário, a degradação da democracia (ou de uma certa visão do que seja esta forma de governo) é que é a causa dos populismos. Contributo inestimável para a afirmação de uma perspetiva multifacetada dos factos societários tem sido, ao longo das últimas décadas, o de Guido Calabresi, ilustre académico da Yale Law School e ainda mais notável juiz federal (do Tribunal de Apelação do Segundo Circuito) norte-americano. Calabresi é considerado um cultor da “Law and Economics” original, porque não se limita a uma mera descrição económica do fenómeno jurídico, preferindo concatenar os mecanismos analíticos e os valores de ambos os domínios visando uma sociedade mais justa. Calabresi propõe, neste sentido, que a análise sobre a distribuição em determinada sociedade dos bens de mérito – isto é, aqueles cuja alocação feita exclusivamente pelo mercado, ou exclusivamente por autoridade centralizada, geram resultados que nos chocam – não ignore o sistema de valores e os custos morais (repulsa, censura, sentimento de injustiça, empatia…) que os seus resultados envolvem para os indivíduos que compõem essa comunidade.

3. Ora, um valor subjacente comum à generalidade das sociedades, independentemente das culturas e das distâncias geográficas, é a igualdade. Se a economia não pode ignorar esta constatação, se o direito tem, assim, de preservar e até impor uma distribuição de bens minimamente igualitária (ou, pelo menos, impedir uma distribuição maximamente desigualitária, porque tal comportaria custos morais que a sociedade rejeita), então a política terá necessariamente de incorporar nos seus processos, no seu discurso e nas suas decisões esta aspiração de igualdade na liberdade. Pois bem, o livro mais recente de Guido Calabresi (“The Future of Law and Economics”, Yale University Press, 2016) não é tão-somente uma obra jurídico-económica: consideramo-la como uma obra sobre o fenómeno humano e o seu enquadramento – logo, uma obra de política. Na verdade, a indagação sempre presente na tese do juiz Calabresi é a de saber “quem suporta o ónus?” – “who bears the burden?”. Quem suporta o ónus (numa linguagem mais comezinha: quem paga) do combate às alterações climáticas? A resposta dos governos tem sido a de sobrecarregar desproporcionalmente a classe média; um primeiro esboço de reação chegou pela voz da revolta que se fez ouvir em França com o movimento dos coletes amarelos. Quem suporta o ónus de desejarmos – porque nos parece ser a solução mais justa, internalizando os custos morais da distribuição do bem de mérito educação que adviriam do funcionamento do mecanismo estrito de mercado – um sistema universitário gratuito? A classe média, mais uma vez? Os mais pobres? Esta última resposta não seria viável, pois estaria a frustrar-se a motivação principal da medida, que seria alargar o acesso ao ensino superior a quem não teria, de outra forma, meios para o pagar… Pensemos ainda no comércio internacional livre. Sabemos que a globalização acarreta benefícios inequívocos. No entanto, quem suporta o ónus de um sistema comercial multilateral livre, mas com regras diferentes, com padrões de exigência díspares, que se repercute na ascensão de uma potência – a China – que é a negação dos progressos civilizacionais de que o Ocidente tanto se orgulha?

4. Evocamos aqui, em jeito de conclusão, que a primeira vez que ouvimos a formulação, em termos claros e diretos, da pergunta “quem suporta o ónus’” foi em 2013, numa aula de “Torts Law”, na Yale Law School, do prof. Guido Calabresi. Já então o académico e juiz norte-americano alertava para o risco de o direito ignorar as tensões existentes na política e na economia; e de a política, por seu turno, desprezar as soluções aventadas pela ciência jurídica. “Who bears the burden?”, curiosamente, foi a indagação que, no mesmo ano da publicação de “The Future of Law and Economics” , haveria de estar subjacente às duas forças motrizes da política norte–americana (e mundial!) no presente e no futuro próximo: o populismo, versão do presidente Donald Trump, e o populismo, versão Occasio-Cortez. Desenvolveremos esta ideia na nossa próxima prosa aqui no i. Para já, importa dar boa nota da homenagem justíssima que a Yale Law School prestou ao labor científico, à preocupação social, à dedicação académica inexcedível e à intervenção cívica empenhada (e, agora, por deveres funcionais) de Guido Calabresi, oferecendo o seu nome a um dos espaços academicamente mais emblemáticos (pelo que significa de encontro entre docentes e alunos, de ponte permanente entre o passado, de que se é orgulhoso, e o futuro, que se quer auspicioso) da faculdade em New Haven.

 

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