AS ROMA. A filha púrpura da loba da Cidade Eterna

AS ROMA. A filha púrpura da loba da Cidade Eterna


Viagem aos primórdios da história do adversário do FC Porto na Liga dos Campeões. Nascido em berço fascista, foi o sonho de Italo Fosci, um herói da I Grande Guerra, que provocou a fusão de três clubes da capital italiana


Entre 1900 e 1929 (ano em que se disputou pela primeira vez um campeonato em Itália sem ser por eliminatórias, jogando todos contra todos) os clubes de futebol proliferavam em Roma sem grande critério, nem estrutura mais consistente do que a de grupos de rapazolas que se juntavam para pontapear uma bola, imitando os ingleses: Football Club Roma, Roman, Lazio, Alba, Fortitudo, Audace, Esperia, Juventus Roma, Pro Roma… Como sempre acontece, em situações idênticas, há sempre algum visionário capaz de mudar o estado das coisas. Esse visionário chamou-se Italo Celestino Foschi.

Fascista dos quatro costados, herói da I Grande Guerra, era um dos favoritos de Roberto Farinacci, o presidente do Partido Nacional Fascista. Em 1924, por entre jogos de futebol, dedicava-se sobretudo a ações violentas contra os maçons tendo sido particularmente feroz nas pancadarias espontâneas que lhe deram fama de arruaceiro. Não era flor que se cheirasse, mas foi fundamental na publicação da Carta de Viareggio, um documento que conduziu à organização do futebol italiano em parâmetros modernos, impelindo os pequenos clubes de cada cidade a fundirem-se de forma a criarem equipas capazes de competir a nível nacional.

Como presidente de um clube mal amanhado, a Sicietà Fascista Fortitudo Pro Roma, Foschi não descansou enquanto não conseguiu assinar uma coligação com outros dois grémios da capital, o Alba Audace, de Ulisse Igliori, outro militar da I Guerra, e o Roman Football Club, de Vittorio Scialoggia, um insigne professor de Direito que chegou a Ministro da Justiça. Gente finíssima, como se vê, apesar da sua queda aterradora para perseguirem todos os que se identificavam com ideais de liberdade e de democracia.

Italo Foschi teria um fim tristonho ao tempo da burlesca Republica de Salò, essa ideia peregrina de Hitler de manter Mussolini como títere de um país inexistente entre 1943 e 1945. Mas no dia 7 de Junho de 1927, na casa da sua família, sita na Via Forlì, 16, Roma, assinava com os seus confrades a ata que definia a existência Associazione Sportiva Roma, da qual se tornou primeiro presidente. Tinha sido tudo planeado ao pormenor: o Alba era popular, o Roman tinha dinheiro, o Fortitudo tinha jogadores.

Contra o norte. A fusão dos pequenos clubes romanos tornara-se de uma necessidade absoluta de forma a alimentar a possibilidade de bater os muito melhor e anteriormente estabelecidos clubes de Milão, Turim ou Génova. A Lazio, que faz com a Roma uma espécie de dupla Rómulo e Remo, alimentadas ambas pelas tetas da loba da Cidade Eterna, teve a capacidade de perceber a realidade mais cedo e foi, por seu lado, absorvendo mais agremiações. A rivalidade tornou-se inevitável. Como dizia com chiste o grande Pittigrilli: “Eram mais do que inimigos; eram irmãos!”

Testaccio, que foi buscar o nome à colina, é o 20º “rione” de Roma – assentemos que “rione” corresponde aos nossos bairros citadinos – uma zona que começou por ser de grande comércio ribeirinho, quando os navios vogavam nas águas do Tibre a seu bel-prazer, mais tarde transformada em povoado habitacional para a classe trabalhadora, sobretudo açougueiros, e hoje em dia um locais privilegiados para quem gosta de restaurantes finórios.

Rodeado por tapumes de madeira, o Campo Testaccio assistiu à grande gesta da época de 1930-31, com Attilio Ferraris, Guido Masetti, Fulvio Bernardini (Il Dottore) ou Rudolph Volk (um rematador exímio, conhecido por Sciabollone, o Espadachim, homem essencialmente prático: “Eu não penso; eu chuto!”), que deu água pela barba à campeã Juventus até ao jogo derradeiro. Attilio Ferraris IV, ficou na lenda. Campeão do mundo pela “squadra azzurra” em 1934, o “Biondino di Borgo Pio” (rua que se dirige à entrada da Santa Sé), tinha tanto talento com a bola como com as mulheres. Ninguém o via sem um cigarro numa mão e um copo na outra. Em seu redor, um arco-íris maravilhoso de raparigas.

Vou agora falar de Alfréd Schaffer. Um húngaro que se fanfarronava de ter jogado por 21 clubes diferentes em 15 anos e que, como técnico, conduzira a Hungria à final do Mundial de 1938, perdendo precisamente frente à Itália. Schaffer era um “rompiscatole”, como dizem os romanos, mas transformou a Roma em campeã pela primeira vez em 1942 (só voltaria a ganhar o título mais duas vezes, em 1983 e 2001). Em plena guerra, a equipa disputava os seus jogos no Stadio Nazionale del Partito Nazionale Fascista. Há muito que Foschi tinha trocado definitivamente o futebol pela política, mas o clube parecia amarrado às suas origens como um barco encalhado num areal, à maré vazia.

A sua decadência foi dolorosa. Anos de resultados medíocres, descida à II Divisão, uma década inteira marcada por sombras que só foram atravessadas pelo raio de sol refulgente da vitória na Taça das Cidades com Feira de 1960-61, face ao Birmingham, até hoje o único sucesso internacional dos homens que vestem de amarelo e púrpura, esse tom imperial também conhecido por púrpura de Tiro ou púrpura da Fenícia. Diz que se tira de uma anémona das profundezas do Mediterrâneo. Representação marcante de uma Roma Imperial que se perde na memórias dos tempos.