Qualquer que fosse a hora, e mesmo tendo Deus de costas para si, José Cardoso Pires escrevia. Tinha umas contas diabólicas a ajustar com isto de se estar vivo, empenhado nas condições gerais, essas que tocam aos que não estão para o enfado nem para os cálculos que levam a algum tipo de poder. Mas porque só começava depois de vencidas todas as facilidades, teve a felicidade de, com a sua sofrida arte, “homenagear” alguns dos carrascos do passado antes que os sinos desistissem dele. Sabendo como, politicamente, o homem é um animal de memória fraca, importava-lhe fazer os possíveis para que não se esquecesse desse erro histórico a que sobreviveu. Lembrava numa crónica, menos de três anos antes da sua morte, em 1995, que, “antes da Democracia da revolução dos Cravos, Portugal, com 420 anos de Censura em cinco séculos de Imprensa, representava uma experiência cultural à taxa de 84% de repressão”. E para ele, se a literatura importava, estava longe de ser tudo. Zangava-se um pouco com Deus, esse que “só se interessa pela literatura dos Testamentos e pela poesia ‘imprimatur’ – a dos hinos, especialmente, e aquela que fala das virgens e dos milagres”. A ele, interessava-lhe ser preciso no testemunho, e são muitas as cartas, fotografias, recortes de jornais e processos judiciais que integravam o espólio, documentos da resistência à ditadura, que foram agora entregues pela família à Torre do Tombo.
Numa entrevista à agência Lusa, o director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Silvestre Lacerda, diz que o contacto com a família do escritor se deu na sequência de uma exposição ali realizada no ano passado, alusiva aos 20 anos da morte de Cardoso Pires. “A família entregou-nos os dossiers de estudo, porque os dossiers e os manuscritos literários estão na Biblioteca Nacional de Portugal”, adiantou Lacerda.
Contendo documentos variadíssimos, os dossiers constituem um vasto arquivo que Cardoso Pires não se limitou a coleccionar ao longo de anos, mas que, tendo sido catalogados e identificados, levam Silvestre Lacerda a admitir que tenha sido um trabalho preparatório a pensar numa obra de fôlego. “Trata-se de documentação que ele estava a recolher para, eventualmente, a sua actividade criativa ou jornalística”, disse o director do ANTT, sublinhando que, face à natureza dos documentos reunidos, Cardoso Pires “estaria a preparar um trabalho grande sobre a PIDE”.
Além de um sem número de actos de resistência, publicações que contornavam ou se desfaziam da mordaça imposta pelo Estado Novo, há uma série de recortes ilustrando a censura prévia feita à imprensa, e documentos oficiais como o do processo judicial que levou à deportação de Mário Soares para a ilha de São Tomé ou outros, mais sinistros, como a cópia do relatório da morte do artista plástico José Dias Coelho, membro do PCP que vivia na clandestinidade e foi morto numa rua de Lisboa. Isto e muito mais foi entregue à Torre do Tombo por um período de 30 anos, cabendo à instituição disponibilizar este espólio à consulta de investigadores, bem como preservá-lo, e restaurar os documentos se for caso disso, podendo apresentá-los ao público em eventuais exposições.
Arquivo de Cardoso Pires sobre a ditadura salazarista entregue à Torre do Tombo
Além de um dos maiores escritores portugueses do século XX, Cardoso Pires destacou-se pela militância anti-fascista, e o seu espólio mostra que andava a preparar alguma