Rita Azevedo Gomes. “Sinceramente, nunca pensei que estava a fazer um filme feminista”

Rita Azevedo Gomes. “Sinceramente, nunca pensei que estava a fazer um filme feminista”


Doravante será conhecida como “A Portuguesa” que encantou Berlim. Falámos com a cineasta Rita Azevedo Gomes


Não há volta a dar: pertencem à portuguesa Rita Azevedo Gomes as imagens mais belas que vimos até agora na nona edição do Festival de Berlim (que decorre até dia 17), de resto, num trabalho magnífico da câmara de Acácio de Almeida. As imagens, mas também as palavras que Agustina Beça Luís adaptou no conto do austríaco Robert Musil. Na verdade, segundo confirma a cineasta, terão sido provavelmente “as últimas coisas que a Agustina escreveu” antes da doença que a impossibilitou de forma definitiva. 

É verdade que “A Portuguesa” permite fazer todas as pontes com o tema da igualdade de géneros, provavelmente o tema que mais marca esta edição, mesmo que Rita se demarque dessa posição. O que importa é que fez um filme belíssimo sobre o masculino e o feminino no seio da nobreza durante a Idade Média. Algo que não fica até atrás do filme “A Favorita”, do grego Yorgos Lanthimos, que já se estreou nas nossas salas, de resto com múltiplas nomeações para os Óscares; bem como não muito distante de “Lady Macbeth”, o bravo filme de William Oldroyd sobre a condição feminina no séc. xix. 

Seja como for, “A Portuguesa” vale por si só, pela forma como Rita Azevedo Gomes capta esses momentos de pausa nos seus longos planos-sequência, onde não conseguimos deixar de ver a influência de Manoel de Oliveira, de quem foi próxima, e que se espraiam para a sua própria forma de olhar o cinema. E vale também pela verve da pena de Agustina no desenho da personagem feminina, a permitir o golpe de asa de Clara Riedenstein (até agora, apenas com participação no filme de João Nicolau “John From” e uma breve presença numa curta), bem como na bravata de Marcello Urgeghe e ainda na liberdade concedida a Ingrid Caven. Em suma, um filme que se vê como um quadro e se escuta como um livro. 

Pistas para uma conversa saborosa, ainda que, paradoxalmente, demasiado limitada no tempo. 

Por onde começou esta sua viagem de “A Portuguesa”? Terá sido pelo livro do Robert Musil, pela adaptação da Agustina? Por algum outro motivo de maior atualidade?

Foi quase em simultâneo. Tinha comprado o livro “As Três Mulheres” há muitos anos, muitos anos antes, num alfarrabista no Porto. Porque achei graça à capa. Às vezes acontece-me. (risos) Comprei o livro e lá ficou, não o li logo. Muitos anos depois, numa conversa com a Agustina, que tinha feito o guião de “A Conquista de Faro” (curta de 30 minutos, de 2005), falámos sobre o Robert Musil e ela disse-me que esse livro tinha um conto chamado “A Portuguesa”. Foi então que li os três contos, que são todos extraordinários. O Musil tem uma escrita muito enigmática. Acabei por perguntar num outro encontro se a Agustina estaria disposta a fazer uma adaptação para cinema. Ela disse-me logo que sim. 

Isso foi há quanto tempo?

Foi depois de “A Conquista de Faro”, portanto, para aí em 2006. Lá consegui os direitos, para escrita do argumento, por um dinheiro que conseguia pagar, porque expliquei que não era o Spielberg. Entretanto, a Agustina entrega-me um guião que tinha para aí sete, oito páginas. Só diálogo. Achei pequenino. (ri-se) Aquilo foi ficando. Entretanto fiz os outros filmes – “A 15.a Pedra” (2007), “A Coleção Invisível” (2009), “A Vingança de uma Mulher” (2012) e “Correspondências” (2016). Infelizmente, a Agustina teve aquele problema de saúde, que lamento mesmo muito. Talvez tenha até sido a última coisa que ela escreveu. Há dois anos fui reler aqueles diálogos e percebi que como eram extraordinários. Decidi pegar no filme. Felizmente, passou este tempo todo e já não tive de pagar direitos. 

Apesar de tudo, o filme parece até ter valores de produção superiores aos reais. Quando o vi, disse que poderia (e deveria) estar na Competição, não fosse o facto de ter passado no festival de Mar de La Plata, na Argentina.

Não mandei aqui o filme para a Competição. Só mandei para o Fórum. Até me esqueci que tinha mandado para aqui. Entretanto já tinha quatro ou cinco festivais a pedirem-me o filme e tive de fechar as portas, o que me deixou um bocado embaraçada. 

E o que significa para si estar aqui no festival de Berlim?

É um bocado esmagador. E há muita coisa, muito espetáculo. Ainda não senti bem que estou numa coisa de cinema. 

Foi precisamente o que senti, que o filme tinha “muito cinema”. Digo isto porque por vezes vemos filmes que são mais… espetáculo ou entretenimento. Para si era essencial fazer o filme como fez, ou seja, muito ancorado no cinema como obra de arte?

Foi talvez por essa razão que mandei o filme para o Fórum. Pelas referências das melhores bocas que tinha diziam--me que o Fórum é muito interessante. 

Uma coisa de que me lembro no debate que teve há semanas na Cinemateca, a propósito da homenagem ao Manoel de Oliveira (num painel com João Botelho e João Mário Grilo, moderado pelo José Manuel Costa, diretor da Cinemateca), foi a sua recordação de como se aproximou do Manoel, dizendo “gostava muito de trabalhar consigo”.

Ah, pois, isso faço. (risos) Isso ainda hoje faço. Senão, não conseguia fazer filmes. É a mesma intuição. Eu chamo a isso apetite. 

Sente também que é um olhar que combina com o seu cinema? Algo que se sente em “A Portuguesa”, o que não deixa de ser, naturalmente, o seu olhar também e a sua visão. Foi algo que lhe ficou da sua colaboração com o Manoel?

Por acaso, com o Manoel não se falava muito de cinema. A não ser naquela longa conversa que filmei com o João Bénard da Costa (“A 15.a Pedra”), em que se falou, entre muitas outras coisa, muito de cinema. O Manoel tinha umas ideias muito precisas, muito sumárias, que repetia e que tinha como regras importantes. Sim, eu observei muito e trabalhei com ele na “Francisca” (1981). Depois, nunca mais trabalhei com ele porque não me queriam lá ao pé dele. (risos) Mas foi uma experiência muito boa. Veja bem, eu não fiz a escola de cinema.

Trabalhar com o Manoel já é uma escola de cinema.

Pois, eu queria ver como aquilo se fazia. Observava tudo, todas as etapas, todos os pormenores, como se carregavam magazins, com se fazia um plano de filmagens. Tudo. 

Tenho de dizer também que o trabalho de fotografia do Acácio de Almeida é belíssimo. 

Sim, ele vem do princípio. “O Som da Terra a Tremer” (1990, o seu primeiro filme) já foi com o Acácio. Mas trabalhar com o Acácio é um prazer.

Como é o seu trabalho com ele? Dá-lhe total liberdade ou ele já sabe o que fazer?

Acho que ele já me conhece e propõe coisas muito giras. Normalmente corre tão bem que não há razão para mudar. Para além de ser muito criativo, gosto muito dele como pessoa. Não consigo trabalhar com pessoas de quem não gosto. 

Voltou a trabalhar também com o José Mário Branco…

Sim, o Zé Mário Branco também conheço há muito tempo. E entrou n’“O Som da Terra a Tremer”, foi o meu ator. 

E será que descobriu também aqui uma nova atriz, a Clara Riedenstein? Viu-a no filme do João Nicolau (“John From”, 2015)?

Não vi o filme do João. Mas foi uma sorte porque andava à procura de uma ruiva. Pensava nas atrizes todas, mas quando elas vão para a televisão ganham tiques de atriz que é muito difícil de tirar. A Clara só fez esse filme. Na altura tinha 16 anos (agora já deve ter 17 ou 18). Quando me aparece aquela criatura extraordinária, eu disse logo: “É esta!” Depois foi complicado porque ela anda na escola, mas tudo se resolveu. Não a larguei. E podia estar completamente enganada. Ela é extraordinária. Se quiser continuar, tem todo o talento. Fiquei cheia de vontade de fazer mais coisas com ela.

Diria que este é um filme sobre o tempo que passa ou o tempo de espera. Gostou de trabalhar essa dinâmica temporal?

Não me preocupo muito se o plano dura muito ou não, enquanto estou a gostar de ver, deixo correr. Aquele plano do banho (em que Clara e Marcello se banham em barris de água) podia ter sido muito mais longo. 

Gostava de saber a sua opinião sobre a atualidade do tema do feminino e do masculino e as relações conjugais abordadas no filme – embora na Idade Média. É um tema muito marcado neste festival, também através da igualdade de género. Podemos traçar algum paralelismo n’“A Portuguesa”?

Todas as pessoas com quem falei sublinham como este festival tem essa carga de igualdade de sexo, como diz. Mas sabe, acho que não é isso que é importante. 

Certo, mas do seu ponto de vista haverá também algum lado de atualidade que possa ter no seu filme?

Tudo isso já lá está no texto do Musil. Desde logo, as questões de poder, de religião, as relações humanas, de homem–mulher. Todas estas são questões atuais. Isso não muda assim tanto. Já me têm dito que é um filme feminista, mas nunca me passou tal coisa pela cabeça. Sinceramente, nunca pensei que estava a fazer um filme feminista.

Mas se calhar pensou, só para terminar, nalguma pintura renascentista para recriar aqueles ambientes visualmente incríveis? Pode ser presunção minha, mas pensei em ambientes e cores usadas pelo Tintoretto, nomeadamente aquele belíssimo banho da criança. 

Não vi nada. Lá está, isso é muito giro, mas o que se passa é o seguinte: eu gosto muito de pintura. Do Tiziano, do Caravaggio, dos renascentistas, mas a verdade é que quando estamos a fazer o filme não pensamos em nada disso. Uma vez, gostava tanto de uma coisa que tinha visto num filme do Bergman que tentei fazer como ele. Olhe, saiu tão mal que acabei por não usar esse plano. Nessa altura, apenas pensamos no que se passa ali, naquele momento. É como os pintores, gostam de muitas coisas mas, quando pegam no pincel, já tudo isso ficou para trás. Ora eu, se tivesse pensado nisso, sentir-me-ia pequenina demais para ter essa sombra. 

Então e agora?

Agora vou tomar um café e fumar um cigarro. (risos) Quanto a filmes, pensei no que ia fazer quando acabei “O Som da Terra a Tremer”, mas passaram-se dez anos para fazer o seguinte, por isso não faço planos. (risos)

(parceria com www.insider.pt)