Entre pilhas de livros e jornais, os jornalistas do “L’Humanité” massacram as teclas do computador. A hora de fecho ainda está longe, mas não há tempo a perder. A edição tem de estar pronta até às 19h30, sob risco de o jornal não chegar às bancas e às mãos dos assinantes. O histórico jornal que durante décadas pertenceu ao Partido Comunista Francês resistiu à mordaça da imprensa na Grande Guerra e às perseguições dos nazis na II Guerra Mundial, mas hoje depara-se com um novo inimigo, aparentemente mais forte: o mercado. É o seu maior combate nas últimas décadas. O futuro de 175 pessoas, entre as quais 124 jornalistas, está em risco.
“A imprensa francesa, historicamente, sempre foi uma imprensa de opinião. Nos jornais históricos, mas também no ‘Le Figaro’. Sempre foi uma singularidade da imprensa francesa que fortaleceu a democracia, o debate de ideias, o pluralismo, a capacidade de informação variada, diferente”, explicou Cathy dos Santos, jornalista da secção internacional que começou a trabalhar no “L’Humanité” em 2002. Uma parte desse pluralismo está em risco com o possível desaparecimento do jornal francês, mas também com o de tantos outros pelo mundo fora, onde a “concentração dos meios de comunicação” tem avançado a passos largos “nos últimos 20 anos, uniformizando o conteúdo da informação”. Avanços tecnológicos, queda das vendas e de assinantes e diminuição da publicidade são as principais razões para o fecho de jornais.
Nem sempre foi assim e há sempre alguém que resiste. Foi precisamente com esse espírito de resistência coletiva que o “L’Humanité” foi fundado, em 1904, por Jean Jaurès, “histórico dirigente socialista e homem de paz”, como o chefe de redação do jornal francês, Patrick Apel-Muller, o caracteriza. “Criou este jornal para que não fosse propriedade do mundo da finança, e mais tarde, em 1920, passou a ser propriedade do Partido Comunista Francês”, conta o jornalista, que desde 1982 escreve regularmente nas páginas do jornal. Como órgão oficial do partido, o jornal alinhou muitas vezes com o movimento comunista estalinista, como aconteceu na intervenção na Hungria, em 1956, mas, outras vezes, também lhe desobedeceu. Foi uma das vozes mais críticas da entrada dos tanques soviéticos na Checoslováquia, em 1968. Tal como o Muro de Berlim e a União Soviética, esses tempos já lá vão e o jornal sofreu uma profunda transformação nos últimos 20 anos, embora mantendo sempre o espírito crítico.
“Há 20 anos”, explica Apel-Muller, “o jornal passou a ser propriedade dos assinantes e de três associações, que detêm a maioria da propriedade.” Passou a focar-se nos movimentos e lutas laborais, assumindo-se como “local de debate, de confronto e de informação sobre os movimentos sociais”, deixando de ser o “jornal oficial do PCF”. “Em França”, continua, “é o único jornal nacional que não é propriedade de grandes grupos económicos, uma espécie de tesouro, porque o panorama atual da informação no país é gerido por grupos integrados com televisões, rádios, revistas e jornais.” Hoje, situado na Rua Pleyel, em Paris, para onde se mudou há cinco anos, tem uma tiragem diária de 40 mil exemplares, 57 mil ao fim de semana. No total, por dia, tem cerca de 114 mil leitores, segundo o chefe de redação.
Há quem não se farte de dizer que os dias dos jornais impressos estão contados, mas também há quem rejeite essa ideia. “Com o papel temos uma hierarquia da informação, o prazer do manuseamento, a unidade de um exemplar, o que é muito importante na construção de uma opinião num mundo cada vez mais complexo”, explica Apel–Muller. “O risco é termos uma informação de baixa qualidade para a grande maioria das pessoas e informação de alta qualidade para as pessoas mais ricas. É a escolha da Amazon, que comprou o ‘Washington Post’, com o cálculo dos negócios”, acrescenta. “É um verdadeiro risco de discriminação no acesso à informação.”
Agora, esse barco chamado “L’Humanité” que se orgulha de navegar sempre contra a maré corre o risco de naufragar. Tem uma dívida de mais de sete milhões de euros e, caso não consiga angariá-los nos próximos meses, pode ver-se mesmo obrigado a fechar portas. “A situação económica do jornal tornou-se tão, tão complicada que hoje em dia já não há dinheiro para se fazerem reportagens no estrangeiro. Já não vamos muito mais longe do que Paris por ser muito complicado”, explica Dos Santos. Uma situação que é também o resultado de não se submeter às pressões do mercado e das empresas: “Enfrentamos uma espécie de discriminação._No passado cobrimos um conflito laboral e o dono da empresa envolvida disse que já não fazia publicidade no jornal”, explica Gaël De Santis, editor do internacional, que trabalha no jornal desde 2007. Uma rápida vista de olhos pelas mais recentes edições do jornal permitem comprová-lo: não há a mínima publicidade.
Mesmo em dificuldades, o jornal não deixa de fazer o que sempre fez: dar uma perspetiva distinta da realidade, com olhar crítico – ainda que seja alvo recorrentemente de opiniões negativas. Denuncia nas suas páginas a repressão das forças policiais contra os coletes amarelos, o crescente autoritarismo e ataques do presidente francês, Emmanuel Macron, às liberdades fundamentais de quem vive e trabalha em França, os golpes contra os direitos dos trabalhadores num país cada vez mais desigual. E isso, num mundo em que todos os jornais se debatem com dificuldades, acaba por tornar a situação ainda pior. Os jornalistas, num espírito coletivo, apoiam-se para aguentarem esses confrontos e receios. “E não, não são todos comunistas, se é essa a pergunta”, apressa-se a responder Dos Santos.
Nos últimos anos, o jornal conseguiu aguentar um embate financeiro atrás do outro, em grande parte por solidariedade dos assinantes, mas principalmente por o Estado ter criado uma linha de apoio para os jornais que não recebem receitas suficientes através da publicidade. “No tempo de Jacques Chirac foi criada uma linha de ajuda para a imprensa que tinha pouca publicidade e passámos a receber um auxílio especial”, conta De Santis, explicando que a “ideia do Estado era promover o pluralismo, ajudando o ‘L’Humanité’ como o ‘La Croix’, jornal de uma congregação religiosa.”
No entanto, “hoje prevalece a ideia de ser o mercado o mais importante”, quando, “há dez anos, termos jornais com várias opiniões era importante para todos os democratas”. “As autoridades estão menos preocupadas em defender esta visão de democracia. Ainda recebemos, mas não tanto como no passado”, conclui De Santis. O Estado francês alargou a ajuda aos semanários não aumentando o orçamento em conformidade, o que diminuiu as ajudas aos diários.
Criticar a edição do dia
Ainda que as preocupações sobre o futuro do jornal não lhes saiam da cabeça, os artigos têm de ser escritos e as edições planeadas. Sabendo que a qualidade do jornal é o seu bem mais precioso, o diretor, o chefe de redação, os editores e até os jornalistas que o queiram reúnem-se à volta de uma grande mesa vermelha para discutirem o jornal do dia seguinte e, mais, criticarem a edição do dia. O chefe de redação, Patrick Apel-Muller, abre o momento da crítica pedindo para que abram o jornal nas duas primeiras páginas. Todos dão uma rápida vista de olhos e ninguém tem nada a dizer. Apel-Muller pede para passarem às seguintes. Fazem-no como se de um ritual se tratasse, até que alguém lança uma crítica construtiva: este título não é claro. O debate começa e chegam à conclusão que é preciso mais cuidado, os leitores não podem sentir-se enganados. Volta-se às páginas e outra crítica é lançada: este grafismo não dá bem a entender que a greve geral teve manifestações em três cidades diferentes. Volta-se a debater e, pouco depois, a folhear as páginas até estas terminarem. A reunião acaba e chegou a hora de cada um se isolar no seu pequeno mundo, de voltar ao teclado. As preocupações têm de ficar fora desse mundo. Todos sabem que não podem falhar, que cada atraso no fecho da edição é como se fosse mais um prego num caixão que ninguém quer ver fechado.
Questionada sobre como é trabalhar neste jornal, Cathy responde que “foi descobrir uma forma de trabalhar”. Uma descoberta que, para ela, passou por “ir em reportagem a vários países da América Latina e também a Portugal”. Cobrir momentos “muito importantes da vida política desses países” foi “uma oportunidade excelente”, garante. E tem sido assim ao longo do tempo, uma experiência de “crescimento, de enriquecimento pessoal e coletivo”.
Diz que, ao contrário de outros jornais, onde a precariedade é a nova normalidade e as pressões são muitas, no “L’Humanité” há “uma grande liberdade na hora de trabalhar e de escrever”. “A precariedade dos jornalistas aqui em França é altíssima. Quase diria que a grande maioria está a viver de uma forma precária.”
Uma situação que extravasa as fronteiras francesas, que se estende a muitos outros países, incluindo Portugal, o que contribui, como explica Dos Santos, para que a informação não seja a melhor, até porque a pressão com a rapidez impede de refletir sobre os temas e o mundo.
É essa tendência que o “L’Humanité” tenta contrariar com as 24 páginas que todos os dias põe nas bancas, garantindo ainda que irá melhorar o seu site: “Não vamos seguir a onda que consiste em enviar 25 mil informações ao mesmo tempo. É impossível para nós e acho que para todos”, garante a jornalista, explicando que “se queremos dar uma informação capaz de contextualizar, de colocar em perspetiva, essa informação não pode ser escrita ao ritmo da internet, em contínuo.”
De Santis não esconde que o seu trabalho no “L’Humanité” foi um um sonho tornado realidade. “Há mais de 20 anos que leio o ‘L’Humanité’ e trabalhar nele é um sonho realizado. É ótimo quando podemos trabalhar no jornal que gostamos de ler”, admite o editor do internacional.
Proteção judicial
Soube-se na quinta-feira passada que o Tribunal de Comércio de Bobigny, que já tinha colocado o jornal sob proteção na semana anterior, deliberou que seria colocado em regime de concordata – estatuto mais suave que a falência e que permite proteger o crédito do devedor, bem como a sua recuperação financeira. Foram nomeados dois administradores do tribunal e um agente. O jornal ficará sob observação por seis meses, prazo que pode ser renovado por duas vezes, e a próxima audiência está marcada para 27 de março. Entretanto, os salários de janeiro dos trabalhadores foram pagos por um fundo de garantia.
“Para todos nós, jornalistas e leitores, [a decisão] foi um alívio. Agora vamos entrar num período de dinamização de um novo projeto”, reagiu Dos Santos à decisão.
A par do combate judicial, o jornal quer também mobilizar os seus apoiantes, estando já marcada uma grande manifestação de apoio para 22 de fevereiro em Paris. E, ao contrário do que se possa pensar, não é só a esquerda que está a cerrar fileiras em defesa do histórico órgão de informação francês. Personalidades de direita também estão a aderir ao apelo do jornal, entre os quais o deputado Aurélien Pradié, dos Republicanos. “O jornal ‘L’Humanité’ não costuma defender as minhas ideias, mas tenho um profundo respeito pelos seus valores e pela exigência dos seus jornalistas”, escreveu no Twitter, referindo que também assinou o jornal em gesto de solidariedade.
“Temos de nos perguntar sobre o que queremos dos média. O ‘L’Huma’ [diminutivo por que o jornal é conhecido] é um jornal apaixonado e diferente”, afirmou Julien Dive, também dos Republicanos.
O fim do “L’Humanité” não será apenas um golpe para os seus 175 trabalhadores e respetivas famílias, que dele dependem. Será também um golpe irremediável na democracia francesa, porque se perde uma parte do pluralismo tão importante nas sociedades democráticas.