“Que morra mas que não morra, dê- -se-lhe um nó que não corra, ou degredado toda a vida e com cem anos para se preparar.”
Foi esta a sentença dada pelo juiz do Soajo João Congosta, pelos fins do séc. xvi, quando lhe foi presente um desventurado cidadão acusado de violento assassinato de um rico lavrador da terra.
Cabe dizer que, desde os tempos da conquista, Soajo era uma vila importante, acastelada por via da defesa contra as surtidas da fronteira vizinha, com julgado, juiz e pelourinho desde D. Afonso iii.
Os testemunhos da acusação apareciam como prova indesmentível, mas aconteceu que o juiz tinha, casualmente, testemunhado o crime e sabia ser outro o assassino, figura desconhecida naqueles lugares. Não o podendo dizer, dada a natureza das suas funções, mas não querendo ficar mal com a sua consciência se condenasse um inocente, acabou por proferir aquela douta sentença. Que transitou para aclaramento da Relação. O desenlace foi ainda mais interessante, e vê-lo-á o leitor se porfiar ir até ao fim do artigo.
São cada vez maiores os sintomas da democracia sem qualidade em que vivemos, parecendo que a única preocupação de muitas das figuras alcandoradas a elites políticas é inventar mil e despudoradas formas de enganar o povo.
Perante o caos em que se encontram os hospitais públicos, perante greves, demissões, atrasos nas consultas e cirurgias, falta de pessoal, encerramento de farmácias hospitalares, vai insistindo a geringonça que tudo isso se trata de uma campanha contra o Serviço Nacional de Saúde. E culpa o sistema privado, que retira receitas ao serviço público. Receitas de um serviço que é gratuito? E como se esse serviço pudesse aguentar os três milhões de utilizadores de cartões de saúde e de beneficiários da ADSE, ou não tivesse de investir adicionalmente em novas instalações e equipamentos, quando não consegue sequer repor stocks de materiais e medicamentos nas unidades que possui?
Nesta geringôncica democracia sem qualidade, não é a saúde do cidadão que interessa, o objetivo é a estatização da saúde. A atual proposta de lei do governo é disso óbvia prova.
E é também assim que duas lídimas representantes desse exótico ideal de que o Estado tudo deve absorver proclamaram que Portugal dá lucro, assimilando grotescamente um mero saldo primário do Orçamento do Estado à economia do país. Como essa dupla é normalmente o indicador avançado das decisões do governo, não se estranhará que este venha a decretar tal como verdade objetiva e palpável.
Mais uma forma desonesta de enganar o povo, por não reconhecer nem dívida nem juros, nem o esbulho que constitui a maior carga fiscal de sempre a que a geringonça sujeitou os portugueses. Numa falácia em que muitos ainda vão acreditando, nem os impostos diminuíram nem houve reposição de rendimentos, apenas variações fartamente compensadas com o aumento dos impostos indiretos, mais anestésicos e convenientes para o governo. Como último exemplo, a proclamação da baixa de impostos sobre produtos petrolíferos, mas aumentando à sorrelfa as taxas de carbono cobradas sobre o preço dos combustíveis. Um embuste e um desplante.
Um grupo de cidadãos, unido em volta da Associação por Uma Democracia de Qualidade e da Sedes, acabou de apresentar no parlamento uma petição com vista à reforma do sistema eleitoral, visando uma mais criteriosa seleção dos políticos, com base na sua competência e sentido de serviço público. Nos debates efetuados houve uma generalizada oposição dos partidos a tal reforma.
Sabendo que a garantia de sobrevivência de muitos dos seus agentes está na lei atual, arvoram-se em juízes e, atuando em defesa de interesses próprios, procuram adiar a sua reforma, se possível por cem anos – afinal, a reforma de um sistema eleitoral também ele culpado por três resgates nos últimos 45 anos. Muitos dos seus responsáveis são prevaricadores que fazem o mal e a caramunha e dos primeiros a invetivar quem procurou corrigir o mal que fora feito.
O juiz do Soajo entrou na sala onde se sentavam os desembargadores nos seus ricos cadeirões. Como continuassem sentados e nem correspondessem ao cumprimento, sentou-se também ele, mas no chão, sobre a sua toga. Deram-lhe então atenção e a palavra, e mantiveram a sentença.
Saía tranquilo o juiz, deixando a toga no chão, quando foi chamado para a levar. Recusou, exclamando: o juiz de Soajo, cadeira onde se sentou, nunca consigo a levou.
Ao contrário do juiz do Soajo, os nossos políticos, uma vez sentados, tudo fazem para não largar a cadeira.
Economista e gestor
Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”
pcardao@gmail.com