A NÓS, QUE NAS BANCADAS NOS SENTAMOS A VÊ-LOS PASSAR, gerindo o menear das nossas cabeças numa esquerda-direita ou vice-versa que tem de abarcar a silhueta dos gloriosos malucos das máquinas voadoras, faz-nos companhia o bruaá ensurdecedor das manadas e manadas de cavalos que vivem dentro dos motores que fazem voar os conjuntos de quadros, depósitos, carenagens e suspensões que levam, alucinados em perseguições de vitórias, aqueles seres humanos que de segunda a quinta-feira parecem comuns mortais e que, em certos fins de semana, se transformam em deuses de mãos e coragens divinas.
A nós que em casa e no sofá, ou num local público junto de outros tantos como nós, a nós que nos sentamos a vê-los passar, gerindo o menear das nossas cabeças desta feita num compasso mais lento, por cortesia do realizador da transmissão, faz-nos companhia e traz-nos ajuda preciosa a voz de quem consideramos um dos nossos, numa melodia de palavras pausadas, de informação atualizada ao minuto, ao segundo e à curva que se segue. E de tal modo se dá esta parceria comentador/ouvinte que quase poderíamos jurar, acaso o destino nos cruzasse os passos, sermos conhecidos um do outro, se não assim tão recíproco, pelo menos do lado de cá para o de lá.
A nós, que somos Falcão, somos 88, Oliveira e ainda Miguel, conduz-nos o nosso olhar por um tapete de asfalto que quase parece fácil e embalam-nos as vozes de estranhos companheiros que nos falam ao ouvido a emoção que nos veste de meninos ansiosos.
Nunca tendo visto a menos de uma centena de metros o profissional Rui Belmonte, pode afiançar este escriba que já o teve em casa e na sala umas dezenas largas de vezes. Pode afiançar até que, nos longos dias que medeiam os fins de semana de corridas, o timbre melódico que nos descreve as peripécias do Falcão em cada GP chega a destapar uma saudadezinha, ao género de quem sente a falta de… um amigo.
E a tal ponto sentimos a coisa que venha de lá o dia que a gente se cruze e por certo nos sairá com naturalidade um cumprimento com a franqueza simples de um “como estás, Rui, tudo bem?”.
Ora, sabendo nós que tudo isto é real e verdadeiro, imaginemos então o safanão sísmico que teremos sentido quando, sem aviso prévio, nos adentrou a casa, a alma e o coração o cantar emocionado de um brasileiro até então desconhecido da maioria, Marcus Augusto, trazendo-nos Henrique Lopes de Mendonça – o da Portuguesa – num dia e Miguel Torga noutro, num quadro pincelado por uma voz arrebatada quando o nosso Miguel voou para a bandeirada de xadrez.
Se já antes nos relatara que o dentista “obturara e dera uma anestesia geral”… que a esquadra portuguesa saíra do navio… “às armas, às armas, sobre a terra e sobre o mar”… se nos pusera ao corrente de que “fechara a porta do consultório o dentista voador”… e ainda nos confessara que “é o vento que me leva, o vento lusitano…” ora então, e perante semelhante relambório descritivo, um gajo, como diríamos entre amigos, se já estava meio ligado à tomada com a vitória que se desenhava na pista, imaginem lá o estado de atarantamento a que se guindou ao escutar o tal Marcus, hoje por hoje o Guto Nejaim que já viajou de boca em boca na comunidade oliveirista.
Não fazendo aqui qualquer apelo, não resistimos no entanto a imaginar a pincelada mágica e certeira resultante do saber pausado e linear de um Belmonte junto com a selvagem cor da paleta de Nejaim.
Cá para nós, que não somos de intrigas, atrevemo-nos a ver um Picasso narrando e um Dali emocionando, isto para sermos imparciais na nacionalidade.
Serei eu a exagerar??
Pois parece-me bem que não!